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Nº 1656 - Ano 35
8.6.2009

opiniao

A construção da paz

Marcos Fabrício Lopes da Silva

Equilíbrio é ter a consciência de que os extremos fazem parte dele. Para vislumbrar alguma luz sobre os descompassos violentos experimentados pela humanidade e os compassos pacíficos almejados por ela, temos que partir dessa ambiguidade fundamental: a realidade. Por um lado, ela vem marcada por conflitos e, por outro, é perpassada por ordem e paz. Nenhum desses lados consegue erradicar o outro. Mesclam-se e se mantêm num equilíbrio difícil e dinâmico. A arte consiste em manter a tensão buscando a convergência de energias que permitem o surgimento da paz, fruto de manifestações individuais e coletivas minimamente justas, includentes e sadias. A paz resulta, portanto, da administração dos conflitos, usando meios não conflitivos. Na construção da paz, os interesses coletivos devem se sobrepor aos individuais, a multiculturalidade sobre o etnocentrismo, a perspectiva global sobre a local.

Há violência no mundo porque carrego violência dentro de mim na forma de raiva, inveja e ódio que devem ser sempre contidos. A explicação da agressividade tem desafiado os pensadores mais argutos. Sigmund Freud parte da constatação de que existem duas pulsões básicas: uma que afirma e exalta a vida (Eros) e outra que tensiona para a morte (Thánatos) – e seus derivados psicológicos como os ódios e as exclusões. Para Freud, a agressividade surge quando o instinto de morte é ativado por alguma ameaça externa. Alguém pode ameaçar o outro e querer tirar-lhe a vida. Então o ameaçado se antecipa e passa a agredir e eventualmente a eliminar o ameaçador.

Outro pensador contemporâneo, René Girard, afirma que a agressividade provém da permanente rivalidade existente entre os seres humanos (chamada por ele de desejo mimético). Essa rivalidade cria permanentes tensões e elabora sinistras cumplicidades. Ao concentrar em alguém toda a maldade e toda a ameaça, a sociedade torna-o um bode expiatório. Todos se unem contra ele para afastá-lo. Essa união instaura uma paz momentânea entre todos os contendores. Desfeita esta paz, inventa-se um novo bode expiatório (os terroristas, os traficantes etc.) e novamente se cria a união de todos contra ele e se refaz a paz perdida.

Os antropólogos nos ajudaram também a entender a agressividade. Asseguram-nos que somos simultaneamente sapiens e demens não por degeneração, mas por constituição evolucionária. Somos portadores de inteligência e de energias interiores orientadas para a generosidade, a colaboração e a benevolência. E, ao mesmo tempo, somos portadores de demência, de excesso, de pulsões de morte. Somos seres trágicos porque surgimos como coexistência dos opostos.

Dada essa contradição, como construir a paz? Ela só triunfa na medida em que as pessoas e as coletividades se dispuserem a cultivar a cooperação, a solidariedade e o amor. A cultura da paz depende da predominância dessas positividades e da vigilância que as pessoas e as instituições mantiverem sobre a outra dimensão – a da rivalidade, do egoísmo e da exclusão. Dentro deste propósito, deseja-se um mundo menos cão e mais são para se viver.

Os índios aymaras, do altiplano boliviano, diziam que cada pessoa, para estar bem com o seu mundo, precisaria de sete diferentes tipos de paz. A primeira é a paz para cima, direcionada às divindades, aos espíritos, aos antepassados e aos mistérios do mundo. A segunda é a paz para baixo, voltada para a terra onde a gente vive, pisa e habita, tendo em vista o zelo ecológico. A terceira é a paz para frente. Diferentemente do operador de tempo da cultura ocidental, os aymaras apontavam o passado como se ele estivesse em sua frente, pelo fato de já ter sido experimentado e vivenciado. Por sua vez, o futuro se posicionaria atrás, por se tratar de um território desconhecido e que, portanto, escapa à visão frontal daqueles índios. Logo, podemos concluir que a paz para frente consiste em buscar uma vida sem remorsos, alcançando uma tranquilidade com o próprio passado, e a paz para trás reside na capacidade do homem de se aventurar na experiência do desconhecido, sem se entregar, portanto, ao temor do que possa vir adiante.

Além dessas formas de paz, os aymaras também defendem uma paz com o lado direito, a paz com a família. Nesse caso, almeja-se alcançar a harmonia com as pessoas com quem você convive permanentemente. Temos também a paz com o lado esquerdo, destinada aos vizinhos. Não adianta apenas a paz com aqueles que estão dentro da sua casa; é preciso ter paz com aqueles que estão ao lado também. Cabe lembrar que, em escala planetária, o vizinho de cada um são todos.

A sétima paz é a paz para dentro, a paz interior. Trata-se da força motriz para a expressão autêntica das outras formas pacíficas aqui mencionadas. Portanto, partindo de uma revolução íntima permanente, temos a chance de agregar individualidades saudáveis a ações coletivas capazes de expandir a paz e retrair a violência. Penso que consiste nesses termos o princípio libertário do processo educativo. Façamos, então, uma campanha de desarmamento íntimo em prol da espontaneidade amorosa proveniente das nossas intenções pacíficas. Se na canção A paz (1986), composta por Gilberto Gil e João Donato, o eu-poético da música lamenta o espírito bélico que direciona a contemporaneidade (“Que contradição/ Só a guerra faz/ Nosso amor em paz”), é chegada a hora de a humanidade experimentar uma outra disposição musical, articulada pela esperança ativa, pela beleza poética e pela ousadia harmônica. Desejando profundamente uma existência mais edificante e altruísta neste “mundo, vasto mundo”, nós seremos capazes de entoar uma nova melodia, a saber: Que transformação/ Só o amor desfaz/ Nossa guerra em paz.

* Jornalista, formado pelo Centro Universitário de Brasília/DF (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG

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