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Nº 1660 - Ano 35
6.7.2009


Iglésias, história e literatura

Ana Maria Vieira

Em 1999, logo após a morte de Francisco Iglésias, suas irmãs procuraram o professor da Face João Antonio de Paula e lhe mostraram a mesa de trabalho do historiador mineiro. Uma profusão de artigos foi o que ele encontrou. Passou então a organizá-los. Os resultados vieram a público um ano depois, com a edição do livro Historiadores do Brasil, reunião de textos inéditos de Iglésias, que foi professor da Face entre 1949 e 1982. Mas a interlocução de João Antônio de Paula com a obra do pesquisador mantém-se ativa. Sinal disso é o recém-lançado História e literatura, pela Editora Perspectiva, seleção de ensaios publicados em jornais e revistas, nos quais Iglésias analisa a obra de pensadores sociais e escritores que ajudaram a formular conceitos sobre a formação do país. “O livro é uma pequena amostra da qualidade do trabalho intelectual de Iglésias, uma espécie de aperitivo que serve como introdução e também estímulo à releitura de seus livros”, diz João Antonio, nesta entrevista ao BOLETIM.

Como era seu relacionamento com Francisco Iglésias?

Eu o conheci na Face, em 1972, embora não tenha sido aluno dele. Escrevi um texto para o sistema de bolsas, do qual ele era o coordenador. Tratava de uma crítica de seu livro História e ideologia. A atitude dele foi a de um professor; deu-me uma nota qualquer e a partir daí eu fui me aproximando mais e nos tornamos amigos. Sua disposição em dialogar marcou minha vida estudantil. Era muito aberto, nunca se colocou numa posição de distância do aluno de graduação. Um dos poucos privilégios que tive e tenho na minha vida foi ter sido amigo dele, ter aprendido muito com ele.

É significativa sua dedicação à obra dele...

Acho que li todos os livros que ele escreveu. Iglésias publicou uns mil artigos. Não li todos, mas gostaria ainda de reunir em livro o que ele produziu, de forma não-sistemática, sobre a história econômica de Minas Gerais, da qual foi precursor, com estudos relativos ao século 19.

Como definiu a edição de História e literatura?

Na introdução do livro História e ideologia, Iglésias registra que era parte de seus projetos fazer uma história das ideias do Brasil e que aquele livro era uma espécie de preparação para isso. Reuni então materiais que ele andou produzindo e publicando em revistas e jornais. Dei o nome de História e literatura porque basicamente é uma continuação de História e ideologia. Só que aqui com ênfase maior em pensadores sociais – Joaquim Nabuco, Oliveira Vianna, Alberto Torres e outros mais conhecidos como Caio Prado Jr, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. E no final, três artigos mais literários, um do modernismo e outros sobre Pedro Nava e Carlos Drummond. Iglésias fez todo tipo de história: social, política, econômica, cultural, das ideias.

Que influências ele recebeu?

O grande historiador que marcou a formação dele foi o francês Marc Bloch. Era a linha da Escola dos Annales, de uma história total, que não perde de vista nenhum fenômeno humano, em suas infinitas possibilidades.

Na escrita também? O Marc Bloch tem uma escrita muito fluente...

Maravilhosa. Francisco Iglésias é, talvez, junto com Sérgio Buarque de Hollanda, o maior estilista da escrita da história no Brasil. Se o que ele fez não tivesse valor como pesquisa histórica, seria maravilhoso como estilo, como texto. Iglésias possui um estilo muito refinado, contido, elegante.

Iglésias tinha uma interlocução com a vanguarda dos anos 40 e chegou a morar em São Paulo. O retorno a Minas teve alguma repercussão em sua produção intelectual?

Ele ficou um período muito curto em São Paulo. Iglésias era amigo de Emílio Moura, Drummond, Mário de Andrade e tinha vínculo com os modernistas mineiros. Ele fez uma transição dessa geração modernista dos anos 20 para a geração de 45: Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Sábato Magaldi, Autran Dourado, Octávio Mello Alvarenga, Jacques do Prado Brandão. Todos o respeitavam por sua erudição e pelo engajamento político muito firme, de esquerda, de luta contra o fascismo.

Além da Escola dos Annales e do marxismo, quais são outras chaves para compreender o pensamento de Iglésias?

Essas são as principais. Mas ele possui uma ligação muito forte com o fenômeno da literatura, no seguinte sentido: é muito difícil para Iglésias separar literatura da narrativa da história. Essa característica não lhe tirava o rigor da pesquisa bibliográfica e documental. Mas a eficácia do discurso histórico passa pela eficácia de um discurso esteticamente elaborado com o mesmo requinte que se elabora um texto de ficção.

Em História e literatura, a análise das contribuições dos pensadores reportados traz algum tipo de questão central?

A necessidade de realizar sínteses abrangentes sobre a história do país. Iglésias repetia que houve um período em que o Brasil foi pensado pelo ensaísmo de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Caio Prado – e foi importante que tivesse sido assim. Mas depois que a universidade se consolidou surgiram estudos mais em profundidade e monográficos. Isso é ótimo, ele diz, mas agora está na hora de alguém tentar interpretar o Brasil como um todo. O estudo muito fragmentado, trazido pela Nouvelle Histoire, a história em migalhas, muitas vezes faz com que as pessoas percam de vista a ideia do todo.