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Nº 1662 - Ano 35
10.8.2009

opiniao

Tangentes

Uma homenagem a Jeferson Mariano, Leo Bedê e Lucas Faisal*

Mateus Morais Araújo**

O método pedagógico do Direito em todo o Brasil é o mesmo e revolucionário método do tangenciamento osmótico. Construído de forma antropológica pela tradição jurídica brasileira, ele consiste basicamente em manter o aluno – do latim alumnus, “o que é alimentado” – por perto do objeto de estudo, mas nunca fora, nem dentro desse objeto, em outras palavras, tangenciando o Direito. Acredita-se que o aluno aprenderá os conceitos desse objeto por osmose – método de alimentação típico das células, e não dos organismos multicelulares, embora certas empresas de cosméticos gostem de fazer parecer que sua pele ou seus cabelos são nutridos por osmose.

Isso parece uma questão periférica, mas não é. É um engodo seríssimo. Você entra na faculdade pensando que está entrando numa faculdade, quando de repente se depara com... com alguma coisa indefinida, amorfa. Como disse um amigo meu, no Direito, o verdadeiro trote não é aplicado quando você passa no vestibular, ele dura um semestre inteiro.

Nesse momento dá até pra ouvir uma voz gritando de longe: “É uma cilada, Bino!” Mas já é tarde, não tem muito como explicar para sua mãe que você na verdade queria fazer cinema, fotografia, ou mesmo medicina, mas teve medo do vestibular, ou do “mercado de trabalho”. Coitado, como se fosse fácil conseguir emprego no Direito. Aliás, aproveito a ocasião para citar uma brilhante professora da “Vetusta Casa de Afonso Pena”: “Gente, se vocês não conseguirem mais nada na vida, venham para cá dar aulas!” E a frase fica assim fora de contexto mesmo, porque foi assim que ela foi dita, em meio a explicações alucinadas, captadas à média de uma a cada cinco frases ditas.

O Direito Penal, por exemplo, funciona assim mesmo. Dizem que se ele funcionasse não teríamos crimes, ou teríamos muito poucos. Ledo engano. Não sei dizer se o Direito Penal funciona bem ou mal, mas uma coisa é certa: os crimes não diminuiriam, senão por coincidência, já que o Direito Penal não proíbe nada. E isso não é apenas um tecnicismo terminológico. O objetivo do Direito Penal é muito claro: estigmatizar os anormais, os perversos, para que os homens de bem possam dormir tranquilos após abusarem de suas filhas, sabendo que elas não correm risco fora de casa. Ironia, ah! A ironia. São as virtudes supremas da contemporânea sociedade psicótica: ironia, hipocrisia e sarcasmo.

E aí você pensa que acabou, né? Tem mais. Podemos fazer uma compilação de alguns elementos rizomáticos – nabais, batatais, beterrabais, em idioma tupiniquim. Deleuze nunca me perdoaria por isso.
O Direito Civil, por exemplo, é dominado pelas freiras góticas da Transilvânia. Uma vez eu li um debate na revista da Editora Del Rey com um professor titular aposentado, que era contra o aborto de anencéfalos, e o interlocutor, um padre que defendia a moralidade dos abortos nessas circunstâncias. Deus queira que já tenha sido excomungado pelo Papa Benedito XVI. Eu tenho certeza que Benedictus é Benedito! Como São Benedito, famoso por protagonizar a piada do papa motorista.

Ah, existem outros ramos do Direito, né? O Direito é assim, arbóreo, radical. Bobbio se remexe em sua catacumba siciliana – este Bobbio não era o personagem do poderoso chefão, aquele era o Luca Brasil. Aliás, nem siciliano ele era. O siciliano no filme quem interpretou foi o Cristopher Lambert, sim, aquele mesmo, famoso por ter feito o Highlander. Um guerreiro imortal da Escócia. Highlander, das terras altas, como Minas Gerais, dos mares de morros. Imortal como Hegel, Platão e Aristóteles. Mas, no fim, só pode haver um. Como já disseram o Highlander e Freud.

Já estamos nos alongando muito, e o limite de caracteres não pode ser estourado. Nunca. Precisamos nos apressar para a conclusão. Mesmo porque, não se tem mais nada a dizer a favor dos meus argumentos. Que argumentos? Leia de novo, talvez você os encontre, eu juro que estão lá. Entre o segundo e o quinto parágrafos.

À conclusão: Tangentes (Pronuncia-se “tanjân”) é uma peça de teatro francesa, teatro físico mais precisamente, parece um espetáculo de dança, supostamente inspirada na obra de Ítalo Calvino, O barão nas árvores. Obra inspiradíssima, diga-se de passagem.

E os motivos pelos quais este texto tem esse título são múltiplos. Primeiro, porque remete a Calvino, de quem gostaríamos de recuperar as Seis Propostas para o Próximo Milênio, milênio que é este, posto que as conferências seriam realizadas nos anos 90 do século passado, e que na prática acabaram sendo cinco, porque Calvino morreu, afinal de contas, ele não era da estirpe de Platão, Aristóteles e Hegel, imortais. Mas oremos por Calvino: Leveza, Rapidez, Precisão, Visibilidade e Multiplicidade. O segundo remete de forma tangencial ao método pedagógico do Direito, que é também tangencial, uma espécie de tangente da tangente, saída pela tangente, ou seria a cavalgada napoleônica? “Eu vi o espírito absoluto passar!” “Ou não?” E por fim, porque a sensação que se deve sentir durante o curso, pelo menos entre o 6º e o 9º períodos, deve ser a mesma da moça na peça de teatro que, na única frase dita em português, fica repetindo angustiadamente: “Eu não estou te entendendo.” É uma pena que não dê para citar músicas, senão certamente citaria Wagner, mas por favor, tenham essa bondade, leiam o texto ao som de A cavalgada das valquírias, mesmo porque, se o texto não servir de nada, a música é ótima.

*Jeferson e Lucas são ex-alunos; Leo é estudante da UFMG
**Estudante do 10º período do curso de Direito da UFMG

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