Busca no site da UFMG

Nº 1662 - Ano 35
10.8.2009


“A democracia mente para si mesma”

Expoente da psicossociologia e da sociologia clínica – que estabeleceram pontes teóricas entre a sociologia e a psicologia –­, o professor Eugène Enriquez (foto), da Universidade de Paris 7, na França, foi o convidado de honra e homenageado do 13º Colóquio Internacional de Psicossociologia e Sociologia Clínica, realizado na semana passada na Fafich. Na última sexta-feira, dia 7, Enriquez encerrou o colóquio com a conferência Das solidões às solidariedades, vínculos sociais contemporâneos em análise, em mais um capítulo de sua profícua cooperação com a UFMG. “Foi a primeira universidade brasileira a se interessar pelo que se passava na psicossociologia francesa”, diz o professor, nesta entrevista concedida antes do evento à psicóloga Ana Massa, formada pela UFMG e doutoranda em sociologia clínica pela própria Paris 7 em regime de cotutela internacional com a Universidade Federal Fluminense (UFF).

Na conversa, o intelectual francês aborda temas delicados, como as relações de poder, a pulverização do Estado-Nação e o viés autoritário dos países de democracia consolidada, tema do livro A face obscura das democracias modernas, ainda sem tradução no Brasil.

Como as conclusões do livro Da horda ao Estado, sua primeira obra traduzida no Brasil, podem ser interpretadas nos dias de hoje?

Ao final do livro, eu dizia temer que depois de transitar da horda para o Estado, acabaríamos fazendo o caminho inverso – do Estado para a horda. Tenho a impressão de que estamos diante de fenômenos que tentam eliminar o Estado-Nação, com a ideia de mundialização, de comércios internacionais e ligações planetárias. Desde a crise de 1929 sabemos que as economias e os diferentes modos de funcionamento dos países são interligados. Mas, ao mesmo tempo, o termo mundialização deveria propor uma ordem mundial, o que não existe. O que percebemos é a pulverização do antigo Estado-Nação, somado a fenômenos de individualização, de pequenos bandos, de corrupção, de desenvolvimento de grupos de gângsteres. É o que podemos chamar de États voyous (estados delinquentes). Mesmo as grandes nações podem se comportar como voyous, como os Estados Unidos que invadiram o Iraque sem autorização especial. A história mostra que, quando se quer estruturar grandes blocos, eles acabam se fragmentando mais do que estavam antes. Daí surgem fenômenos como o que envolve valões e flamengos na Bélgica e os movimentos autonomistas na França e na Itália. Ao mesmo tempo em que o mundo se homogeneíza, o medo da homogeneização faz com que as pessoas voltem às suas raízes.

Suas ideias interessam muito aos estudiosos da administração. Como andam as relações de poder no campo do trabalho?

Meu sentimento é o de que as relações de poder na atualidade são claramente piores em todo o mundo do que há algumas décadas. Embora seja hoje bem menos absoluto, o poder é muito mais sutil, manipulador e sedutor. Com a individualização das funções e a diminuição da força dos sindicatos, muitas pessoas são obrigadas a investir profundamente no trabalho e fazem muito mais do que lhes foi pedido.

Qual é a questão fundamental tratada em seu livro A face obscura das democracias modernas?

Há uma representação mítica da democracia, vista como um elemento que tende a fazer a humanidade caminhar sempre no sentido do melhor. Mas a democracia mente para si mesma. Os países de democracias mais sólidas foram os piores impérios colonialistas. Eles dominaram o mundo durante muito tempo e continuam a dominá-lo por meio de trocas econômicas. E na democracia impera também a vontade de impor sua visão ao resto do mundo. Saddam Hussein era muito ruim, mas depois de vermos como ele foi substituído, talvez fosse melhor que ninguém tivesse tocado nessa história. O que tentamos ver através dessa face obscura é o não-dito pela democracia, sempre encoberto por um belo discurso de oportunidades para as pessoas. A Revolução Francesa nos trouxe muitas ilusões, mas hoje percebemos que as coisas não são tão simples assim.

O senhor está escrevendo um livro sobre o amor. Em que estágio ele está ?

Na verdade, trabalho em três livros simultaneamente. Mas este sobre o amor está em andamento já faz alguns anos. Para mim, o termo amor é muito forte e me parece essencial para a constituição dos laços sociais, como Freud havia evocado em relação a amizade, ternura, solidariedade, camaradagem, confraternização. Estou totalmente de acordo com Freud, quando ele diz, em O mal-estar na civilização, que não é simplesmente o interesse que leva as pessoas a se agruparem. Mas faço uma distinção entre o amor e a paixão amorosa. Na paixão amorosa, há um tipo de impulso total, que visa a englobar o outro na sua unidade própria e a ser englobado completamente pelo outro. O amor é um sentimento extremamente profundo, em que os dois estão em igualdade e em reciprocidade. Cada um deve contribuir para o outro, mas permanece diferente do outro. Não há fusão amorosa, a não ser em momentos excepcionais.

O senhor fala muito da apatia do mundo moderno. Como ela se caracteriza e aonde poderá nos levar?

Há um dinamismo em todas as sociedades que precisa ser compreendido. Muitos dizem que vivemos em uma sociedade dividida, que cada um está na sua casa, em frente à televisão, como imbecis. Sim, tais tendências existem em nós, como fenômenos de autodominação, mas ao mesmo tempo, como dizia Freud, “o homem sempre se negará a ser um cupim”. Há, sim, apatia, mas também há dinamismo. E isso pode ser notado em pequenas experiências que, pouco a pouco, acabam por se reunir e se entrelaçar. Sempre dou um exemplo, que é meio bobo: a Revolução Francesa não começa em 1789, mas em 1781, com movimentos de camponeses em vários lugares. A situação vai crescendo até que o povo proclama: “Queremos os Estados Gerais”. Foram seis, sete, oito anos de incubação em diferentes lugares e, durante certo tempo, as pessoas não desconfiaram de nada. E um dia tudo aconteceu.