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Nº 1664 - Ano 35
24.8.2009

opiniao

Sem prática não há projeto

Otavio Curtiss Silviano Brandão*

A Comissão Permanente de Pessoal Docente (CPPD) tem, como competência, a emissão de pareceres referentes à alocação de vagas docentes aos departamentos da UFMG. Ela considera, em seu cálculo de vagas adequadas a cada departamento, o somatório de produções dos tipos 1 e 2. Aí estão incluídos livros, capítulos, tradução e edição de livros, trabalhos em periódicos nacionais e estrangeiros indexados, artigos completos em anais, teses, resumos em congresso, artigos de divulgação, cartilhas, textos didáticos e teatrais, resenhas, memoriais e outros.

Observa-se que apenas o saber discursivo é considerado, em detrimento do saber prático do arquiteto, do cirurgião, do engenheiro civil, do músico ou do artista plástico. Assim, todas as áreas da UFMG que se dedicam a saberes operativos são desvalorizados em bloco, como o Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG, que teve seu número de docentes recentemente limitado: sua produção, medida em publicações dos tipos 1 e 2, sinaliza em direção à necessidade de menos docentes do que o número atual. Este artigo propõe uma revisão de tal situação.

Nos anos 60, Herbert Simon dividiu as ciências em dois grupos: as ciências da natureza (CN), que são exatas, têm na análise sua principal ferramenta e cujos produtos são construções teóricas; as ciências do artificial (CA), por sua vez, lidam com processos de síntese e englobam “a engenharia, a medicina, os negócios, a arquitetura e a pintura”. Enquanto as CN estão direcionadas para a descoberta de como as coisas são, as CA se voltam para como elas deveriam ser – em poucas palavras, o projeto. Enquanto as CN produzem discursos, as CA geram coisas e transformações nelas. Não obstante, a CPPD privilegia apenas a produção discursiva, ignorando essa diferença fundamental entre as ciências e a necessidade, para ambas, de interação efetiva.

Uma escola de arquitetura, em qualquer lugar do mundo, tem como objetivo principal a formação de arquitetos para a execução de projetos. Parece incrível ter que fazer essa delimitação, mas, em tempos de ditadura do saber, é absolutamente importante que ela seja feita. O modo mais comum de se conceber a relação entre conhecimento e projeto indica que, primeiro, é necessária a posse prévia de algum conjunto de saberes delimitado, para só então se partir para a prática.

É um equívoco privilegiar, em uma escola de arquitetura, o discurso em detrimento da prática, uma vez que esta não é passível de ser reduzida a qualquer conjunto supostamente estável de saberes estabelecidos, dada a imprevisibilidade de situações com as quais se depara o arquiteto.

Até aqui estamos no domínio de um discurso que pressupõe, equivocadamente, que a prática é tal como ele – o discurso – a vê e a descreve. Essa concepção ignora as especificidades da questão, uma vez que só se aprende a fazer projeto com prática e estudo, simultaneamente. Projetar é diferente de discorrer, argumentar ou explicar. Em projeto arquitetônico são dadas situações que demandam desdobramentos no espaço físico, e a mestria na administração desses desdobramentos não tem como ser alcançada senão pela prática. É um equívoco privilegiar, em uma escola de arquitetura, o discurso em detrimento da prática, uma vez que esta não é passível de ser reduzida a qualquer conjunto supostamente estável de saberes estabelecidos, dada a imprevisibilidade de situações com as quais se depara o arquiteto.

Em oposição ao discurso acerca do conhecimento suficiente, ou seja, aquele que defende a posse de um conjunto prévio de saberes para habilitar o arquiteto à prática do projeto, a defesa do projeto arquitetônico como produção tipo 1 valoriza o conhecimento prático: coisa que se faz com o corpo, dotada de um saber próprio, só de longe entrevista pelo discurso. O arquiteto, diferentemente do cientista, trabalha não para compreender problemas ou a realidade, mas para providenciar soluções.

Um dos principais pensadores do processo criativo em arquitetura, Bryan Lawson, da Universidade de Sheffield, faz uma analogia útil: para aprender a nadar não é suficiente a leitura de livros a respeito do assunto. Em um projeto arquitetônico, para se resolver determinada questão, lança-se mão desta ou daquela ferramenta, escolhida caso a caso, na medida em que se supõe que seu emprego pode ser útil. Isso é diferente de estabelecer um conjunto de conhecimentos prévios para que, uma vez de posse deles, alguém seja julgado habilitado para a ação. Não tenho a intenção de propor a inutilidade do conhecimento discursivo para quem projeta, mas sim a integração dos dois tipos de saber como necessários à formação do arquiteto.

Elaborar um projeto arquitetônico não é arregimentar discurso. Projeto é traço. Aprende a fazê-lo quem pratica. Não existe, em lugar algum, um conjunto estanque de conhecimentos que possa ser tomado como suficiente para a elaboração de projetos. Por esse modo de conceber as coisas, o professor que projeta tem melhores condições de ensinar a prática e o gosto pela prática do que aquele que não o faz.

Por essa razão, se tem interesse no desenvolvimento de uma escola de arquitetura que ensine o fazer do projeto arquitetônico, a UFMG deverá valorizar os professores que lidam diretamente com essa área. E isso pode ser feito, por exemplo, considerando a elaboração de projetos arquitetônicos como produção acadêmica do tipo 1.

*Professor do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG

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