Busca no site da UFMG

Nº 1666 - Ano 35
7.9.2009

opiniao

A violência premiada na TV

Sandra Azerêdo*

“Ele quebrou o braço da velha, uai!” Essa frase foi entreouvida na conversa de dois homens que passaram por mim durante caminhada numa manhã de sábado na Barragem Santa Lúcia. Eles estavam certamente se referindo ao reality show “A Fazenda”, da TV Record, em que o ator Dado Dolabela, muito conhecido por sua atuação em novelas da Rede Globo, ficou como o único homem finalista, disputando com uma mulher o prêmio de um milhão de reais.

O comentário me pareceu alvissareiro, pois mostrava que eu não era a única a me preocupar com a premiação de um homem que, pouco antes de ser convidado para participar do programa, havia batido em sua namorada e quebrado o braço da empregada que correra para socorrê-la. É sem dúvida preocupante que grande parte da sociedade brasileira seja conivente com a violência contra mulheres ao premiar esse ator. Não importam as tramoias da TV para premiar quem ela mesma quer, enganando ou não o público sobre sua participação no programa, o certo é que no domingo à noite tivemos a confirmação de que o ator venceu com 83% dos votos do público.

O comentário na Barragem Santa Lúcia me fez lembrar dois artigos publicados recentemente nesta seção do BOLETIM. O primeiro, de 27/7/2009, intitulado As pedras invisíveis nos sapatos da lama institucional, de Daniel Rodrigues Costa, aluno do terceiro período da Faculdade de Direito da UFMG, e o segundo, de 17/08/2009, intitulado Uma intelectual em busca de justiça, de Marcos Fabrício Lopes da Silva, doutorando em Estudos Literários/Literatura Brasileira na Fale.

Nesses textos há uma perspectiva crítica de análise de nossa sociedade, mostrando a necessidade de nos implicarmos em nossas ações e não apenas projetarmos no outro aquilo que não queremos ver em nós. Os dois textos se apoiam em autores e autoras cujos trabalhos tratam precisamente dessa questão da relação do Eu com a alteridade. Daniel cita Paulo Freire, Fernando Pessoa e Che Guevara, e Marcos cita Arthur Bispo do Rosário, Carolina Maria de Jesus, Milton Santos e Clarice Lispector.

O texto de Marcos centra-se no trabalho desta última, fazendo uma análise de monografia produzida quando ela era estudante de Direito e da crônica “Mineirinho”, publicada em 1962. Como escreve Marcos, o primeiro texto é “uma espécie de manifesto público” em que Clarice questiona o direito de punir, afirmando que “há apenas o poder de punir” (grifo meu), isto é, a instituição pune determinadas ações que a ameaçam. Na crônica de 1962, Clarice se interessa mais em denunciar a brutalidade dos policiais, contando os 13 tiros que mataram Mineirinho, do que os seus crimes. “O décimo terceiro tiro”, como ela escreve, “me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.

A violência contra mulheres pode ser entendida como resultado de uma relação de poder em que se pune o outro que não se enquadra nos padrões impostos por uma sociedade falocêntrica em que o homem branco heterossexual representa o universal. Para lidar com esse tipo de violência é indispensável expor as suturas de tal representação e mostrar como esse universal se constitui às custas da alteridade. (No Brasil, isso fica claro em relação ao futebol, que, por ser o esporte nacional [universal], é o esporte de homens. Os fatos de as brasileiras jogarem um excelente futebol e de Marta ter recebido dois prêmios de melhor jogadora do mundo não contam.) E isso só se consegue saindo de nossa posição de idênticos a nós mesmos e sendo o outro, como Clarice coloca.

Porém, não é nada fácil ser o outro, como Clarice mostra ao longo de seu romance A hora da estrela, publicado em 1978 (Rio: Livraria José Olympio Ed.). Ali Clarice se metamorfoseia em homem, Rodrigo S. M., para narrar a história de Macabéa, imigrante nordestina no Rio, “porque escritora mulher pode lacrimejar piegas” (18). Rodrigo se apresenta como “um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto” (24). E “para falar da moça [tem] que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras escuras por dormir pouco” (25). E quando vê “a nordestina se olhando no espelho ... no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo” (28).

Considero que, através das metamorfoses que acontecem no livro, Clarice consegue realizar a difícil tarefa de tratar questões de gênero e suas intrincadas relações com raça e classe. Tratar essas questões assusta porque ameaça nossa unidade e continuidade. Como argumenta Miriam Chnaiderman no artigo “Michael é o nosso estranho outro”, publicado na Folha de São Paulo em 1993, Michael Jackson “ameaça... porque questiona a noção de identidade”, que sustenta a ilusão de uma unidade circunscrita. Como ela escreve, “Michael Jackson era negro, branco, criança, menino, homem, mulher, asiático, animal, africano, doce, agressivo... Ou seja, dava forma para a multiplicidade que constitui todos nós. É por aí que sua figura exerce esta estranheza: ele nos põe diante dos outros que nos constituem”. É a noção de identidade que sustenta nossa defesa contra o encontro com o outro, defesa que é base do preconceito.

Todas essas questões permeiam a violência contra mulheres que está de certa forma no centro da premiação da TV Record. Talvez em sua conversa os dois homens na Barragem não tenham ido além de considerar o braço quebrado da “velha”, a empregada. No entanto, ao se preocupar com ela, mesmo chamando-a de “velha”, podem estar dando um passo no caminho do encontro com o outro. Desejo fortemente que sim, especialmente depois de os telespectadores terem votado maciçamente em um homem que bateu em mulheres.

*Professora titular do Departamento de Psicologia da Fafich

Esta página é reservada a manifestações da comunidade universitária, através de artigos ou cartas. Para ser publicado, o texto deverá versar sobre assunto que envolva a Universidade e a comunidade, mas de enfoque não particularizado. Deverá ter de 4.000 a 4.500 caracteres (sem espaços) ou de 57 a 64 linhas de 70 toques e indicar o nome completo do autor, telefone ou correio eletrônico de contato. A publicação de réplicas ou tréplicas ficará a critério da redação. São de responsabilidade exclusiva de seus autores as opiniões expressas nos textos. Na falta destes, o BOLETIM encomenda textos ou reproduz artigos que possam estimular o debate sobre a universidade e a educação brasileira.