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Nº 1675 - Ano 36
9.11.2009

opiniao

20 de novembro ou 13 de maio?

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Diante desse oportuno questionamento sobre qual das duas datas seria a mais significativa para os negros, Ivan Alves Filho, na revista Carta’ (1994), respondeu que “as duas datas se complementavam, e que era preciso integrar tanto o 20 de Novembro quanto o 13 de Maio à história das lutas pelas liberdades no Brasil, em particular à história da Abolição”. Eufórico, o historiador enalteceu o 13 de maio como marco da “primeira e única revolução social brasileira”, já que concretizou, em termos jurídicos, a transição do escravismo para o capitalismo. Quanto à resistência quilombola simbolizada por Zumbi, Alves Filho considerou o movimento importante, porém, sem ter obtido o êxito da Lei Áurea no que tange à libertação dos negros, por conta da “incapacidade da massa escrava de transformar a História”. Tal fato colabora para a tese do intelectual de que “o 13 de maio incidiu com muito mais vigor sobre a História do Brasil do que o 20 de novembro ou qualquer outro movimento social anterior”. Neste caso, nota-se como Ivan Alves Filho comete o desserviço histórico de fortalecer o 13 de maio e enfraquecer o 20 de novembro. O que será que está por trás dessa preferência?

Sobre o assunto, Cuti faz uma ousada leitura de como o passado dos negros foi branqueado historicamente. No poema Teses, o autor ressalta a diferença entre os dois modelos de liberdade: o da história oficial, presente na Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888; e o dos negros, simbolizado pela data de 20 de novembro de 1695, quando morreu Zumbi, o líder do Quilombo dos Palmares. A distinção entre tais marcadores leva o poeta a questionar: “quantas dores de escravo/tecem o macacão operário?/com quantos chicotes/se fez o milionário?/quantos 20 de novembro/o 13 de maio matou?”.

Embutidos na consagração do 13 de maio estão os marcos da liberdade concedida e autorizada, da autonomia por decreto, do favor da casa grande, do complexo de senzala, do negro passivo e do branco ativo. Repete-se à exaustão a ideia de que bastou a pena da Princesa Isabel entrar em ação para a escravidão ser abolida no Brasil. Contudo, sabemos que até hoje existe a marginalização contínua do negro. Compreende-se então o motivo pelo qual o artista e músico Maurício Tizumba confidenciou, certa vez, que o vocativo “Sá rainha” cantado por ele se refere à Princesa Isabel. Agindo assim, o cantor rasurou o epíteto oficial de “A Redentora”, que consagrou a mencionada autoridade imperial. Assinada por ela, a Lei Áurea não se constituiu instrumento suficiente para promover uma efetiva melhoria das condições de vida dos negros. Por isso, Tizumba ironicamente revela, em Sá rainha (África Gerais, 1999), o “mais do mesmo” que tem marcado a nossa história étnica: “Sá rainha chamou: ê viva, ê viva!/Com o chicote na mão: ê viva, ê viva!/Eu não sou de apanhar, eu não sou nego dela/Eu não vou lá, eu não vou lá!/Eu não! Eu não!/Ela vem com conversa de dona/Mandona mandando a gente trabalhar./Sei que dói a chibata no lombo/A canga no ombro pra que que eu vou lá?”.

O delírio público em torno do 13 de maio já tinha sido relativizado por Machado de Assis, em Esaú e Jacó (1904). Na oportunidade, o romancista formulou a seguinte advertência: “a abolição é a aurora da liberdade, esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco”. A Lei Áurea representou especificamente um passo de uma árdua caminhada rumo à autonomia de um povo. Mais do que uma medida formal, faz-se necessário “emancipar o branco”, conforme o alerta machadiano. Ou seja, é preciso alterar a mentalidade escravizadora vigente, uma vez que ela tem inviabilizado o acolhimento pleno da subjetividade afro-descendente. Ciente disso, a consciência negra, ao ser representada dignamente pelo 20 de novembro, se vale do quilombismo como alternativa política de matriz própria. Munido pela resistência quilombola, o afro-brasileiro compreende seus parâmetros, sendo protagonista dos feitos libertários, autônomos e culturais. Para tanto, é preciso problematizar o conflito étnico existente entre a paralisia branca e o movimento negro, pondo em xeque o mito falacioso da “democracia racial”, a partir da exposição reflexiva das chagas do racismo à brasileira.

Investigando a fundação dos quilombos no Brasil, constata-se que sua proliferação se deu porque a comunidade negra escravizada buscou resgatar sua liberdade e dignidade, desvencilhando-se dos cativeiros para organizar sociedades livres. Trata-se de um autêntico movimento sociopolítico e econômico protagonizado pela população negra que se recusava à submissão, à exploração, à humilhação e à violência do sistema escravista. Essas formas associativas geraram irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afochés, escolas de samba, gafieiras e outras manifestações culturais erguidas para dar vazão à competência epistemológica e performática da comunidade negra. É nessa práxis afro-brasileira de resistência à opressão e de autoafirmação política que se fundamenta o quilombismo, segundo destaca o poeta e dramaturgo Abdias do Nascimento.

Há bandeiras coletivas de hoje que já eram defendidas pelas experiências quilombistas como a educação comum a todos, o respeito étnico, o fortalecimento do mercado interno, a rejeição crítica ao poder do capital, os direitos humanos, a mobilização comunitária, o cooperativismo. Tais lições políticas se opõem aos vícios coloniais do trabalho escravo, do paternalismo e do patrimonialismo. Construída às margens do sistema dominante, o quilombismo evocado no 20 de novembro representa uma alternativa política de cunho afro-brasileiro, uma vez que traz em seu bojo valores fundamentais para a expressão da alteridade dentro de um horizonte democrático.

* Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG

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