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Nº 1697 - Ano 36
31.5.2010

Inventários poéticos

Maria Esther Maciel mostra em livro como artistas exploram o conceito de enciclopédia de forma crítica e criativa

Itamar Rigueira Jr.

Foto Lúcia Castello Branco
Peças de xadrez na arte de Arthur Bispo do Rosário

Desde criança, a professora Maria Esther Maciel, da Faculdade de Letras (Fale), tem interesse especial por enciclopédias, dicionários, coleções e listas de gêneros diversos. Esse gosto infantil invadiu sua vida acadêmica. O livro As ironias da ordem, que a Editora UFMG acaba de lançar na Bienal do Livro de Minas, reúne os resultados de pesquisas que Maria Esther desenvolveu nos últimos anos.

O subtítulo da obra – Coleções, inventários e enciclopédias ficcionais – indica o caminho trilhado pela pesquisadora, que explorou a relação crítica e criativa de escritores e outros artistas com os sistemas de classificação. Ela começou com Jorge Luís Borges – “fascinado por jogos taxonômicos, enumerações infinitas, listas insólitas”, segundo Maria Esther – e derivou para obras como as de Carlos Drummond de Andrade, Arthur Bispo do Rosário e do cineasta Peter Greenaway.

“Meu propósito é mostrar como autores incorporam as enumerações fazendo seus próprios inventários. Eles revelam a insuficiência das listas, o caráter arbitrário dos sistemas de classificação que regem nossas vidas e o conhecimento”, explica Maria Esther Maciel. Para fazer a leitura de artistas contemporâneos, ela visita Dante e artistas do Renascimento, e explora teorizações de Walter Benjamin e Michel Foucault, que trataram das formas de organização do conhecimento em vários contextos da história ocidental.

Outra preocupação da professora da Fale foi estabelecer diferenças entre os diversos sistemas. Ela lembra que as enciclopédias “transbordam os limites da ordem e tendem ao infinito”, enquanto as coleções têm limites mais claros e são marcadas por relações de afinidade e contraposição. “Os atos de registrar e catalogar retiram os objetos do estado dispersivo e colocam-nos em outro espaço”, define Maria Esther, que em 2004 produziu o livro de ensaios A memória das coisas, de temática parecida.

Animais em catálogo

As ironias da ordem não deixou de fora os chamados bestiários, relações de animais que existem desde os gregos, como lembra a pesquisadora. O gênero se consolidou na Idade Média, com base no imaginário cristão, e foi retomado no século 20 sobretudo por escritores latino-americanos, que o reinventam sob outros princípios, abandonando o moralismo religioso. Com o Manual de zoologia fantástica, Borges ressuscitou os bestiários, inspirado no imaginário medieval e na própria história da literatura, de acordo com Maria Esther Maciel. No Brasil, Wilson Bueno – autor de Jardim zoológico (1999) – recupera crônicas dos viajantes europeus e cria animais híbridos, misturando elementos mitológicos, indígenas e das culturas brasileira e hispano-americana.

Mas as listas na arte brasileira extrapolam a fantasia em torno dos animais. Dos textos de Drummond, a autora extrai coleções de objetos, palavras e lembranças. “Ele recolhe imagens do passado para fazê-las poesia”, diz Maria Esther. O documentarista Eduardo Coutinho, por sua vez, teria produzido, no filme Edifício Master, “um catálogo de retratos e biografias”. Em Bispo do Rosário, ela identifica “coleções poéticas” bordadas e escritas, compostas de materiais recolhidos no hospício. “Ele se dizia incumbido pelos anjos de fazer um inventário das coisas do mundo para apresentar a Deus”, conta a autora.

Na pós-modernidade, Maria Esther encontrou uma superatualização do recurso. Fascinado por enciclopédias, o cineasta Peter Greenaway – de A barriga do arquiteto – criou sua versão a partir de recursos visuais e tecnológicos ousados. O projeto As maletas de Tulse Luper conta a história do século 20 por meio de coleções, como a de barras de ouro tiradas das joias dos judeus roubadas pelos nazistas. O projeto se desdobra em longas-metragens, livros, sites, blogs, performances, teatro e ópera.

Privilegiada por explorar na academia uma paixão (e uma pulsão) antiga, a pesquisadora teve sorte mais uma vez. “Com Greenaway, trago a discussão para o século 21”, comemora.

Livro: As ironias da ordem – Coleções, inventários e enciclopédias ficcionais
De Maria Esther Maciel
Editora UFMG 153 páginas
R$ 30