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Nº 1698 - Ano 36
7.6.2010

opiniao

O legado de Lost *

André Machado **

A exemplo do que ocorreu com obras como O senhor dos anéis, Jornada nas estrelas, As crônicas de Nárnia e Guerra nas estrelas, o seriado multitransmídia Lost criou sua própria mitologia e teve grande impacto nesta primeira década do século 21, a partir de 2004. Ao lado de 24 horas (2001), que revolucionou a narrativa televisiva com o conceito de “tempo real”, tão propalado pela internet, foi uma obra que atropelou as fronteiras entre as diferentes plataformas, assim como sua trama ultrapassou as fronteiras do tempo linear, de realidade e imaginação, de lembranças do passado e insights do futuro, e mesmo da ideia de metafísica.

Nunca roteiristas e produtores foram tão ousados ao jogar com temas de difícil compreensão, deixando de lado a forma didática e de cima para baixo com que certos programas tratam o telespectador. Propositadamente, ao longo das seis temporadas de Lost, fomos expostos a contínuos paradoxos, alguns livremente baseados em suposta ciência, outros lidando com fé e misticismo, outros ainda falando de amor, perdas e complexidade das conexões humanas, em qualquer plano.

‘Telespectador’ é uma palavra completamente inadequada para definir um aficionado de Lost. Ele é, verdadeiramente, o primeiro prosumer – misto de produtor e consumidor – e causa grande impacto na forma como lidamos com as mídias. A série se valeu de games, incontáveis referências de livros, filmes, músicas, nomes, símbolos, e as sutilezas e surpresas da história da ilha levaram internautas não só a criar uma enciclopédia exclusiva para a série (a Lostpedia), como também a produzir calhamaços digitais de teorias internet adentro, em fóruns, blogs e outras redes do gênero. Nos sites de download, equipes se dedicaram a botar no ar o mais rápido possível os episódios que acabavam de passar na matriz americana – e não por acaso o último episódio chegou ao Brasil apenas dois dias depois de sua exibição nos Estados Unidos e em outros países.

‘Telespectador’ é uma palavra completamente inadequada para definir um aficionado de Lost. Ele é, verdadeiramente, o primeiro prosumer – misto de produtor e consumidor – e causa grande impacto na forma como lidamos com as mídias.

Na verdade, trata-se do triunfo da imaginação sobre a ideia de receitas de bolo baseadas em anos de tradição televisiva. E da exploração ao máximo de romances históricos e mágicos, tendência que presenciamos há algum tempo – vide a saga de Harry Potter, outra obra com mitologia e universo próprios. Ou A Torre Negra, de Stephen King, espécie de faroeste sci-fi que vai virar filme e série. Quem leu O código da Vinci e não foi pesquisar sobre o Graal e assuntos bíblicos controversos? Quem não lê as aventuras de Richard Sharpe no exército do Duque de Wellington (ficção com boa base histórica do britânico Bernard Cornwell) e corre depois para a Wikipedia, para saber mais sobre batalhas, personagens e cenários dos romances?

Lost faz parte dessa linhagem e será difícil superá-la. O problema com novos formatos que fazem sucesso inesperado é que, nesse mundo voraz, aparecem rapidamente centenas de spin-offs (séries derivadas) e imitações, raramente com a qualidade da obra que os inspirou. Por exemplo, Flash forward, já cancelada. Fringe, do próprio J.J. Abrams, até que está indo bem, mas o que a segura é a figura impagável do “cientista louco” Walter Bishop. Já em Lost todo o elenco fez diferença; o envolvimento com os personagens foi fundamental para seguirmos as “lostices” até o fim.

O próprio desfecho da série, em que se revela estarem os personagens mortos, gerou grande polêmica na internet, face a imagens dos destroços do acidente aéreo do fictício voo Oceanic 815 que a emissora ABC veiculou junto com os créditos finais. Até nesse momento o nível de detalhe com que os aficionados perscrutavam cada cena falou mais alto: a rede americana teve que admitir, no Los Angeles Times, que as referidas imagens nada tinham a ver com o fim em si criado pelos produtores Damon Lindelof e Carlton Cuse. A sanha esmiuçadora de quem viveu a experiência de Lost foi assim ao longo de todas as temporadas. Basta uma olhada nas seções da Lostpedia para percebê-lo: analisavam-se as referências histórico-culturais de cada cena, as formas de narração, os mistérios mitológicos e até mesmo as notas de produção. Da televisão (ou do download, porque depois de um tempo era quase impossível esperar a chegada dos episódios por aqui), passava-se a um profundo mergulho em hiperlinks, imagens, fotogramas de cenas e assim por diante. Pode-se dizer que o mote do seriado casou-se perfeitamente com a navegação no ciberespaço, onde, a cada resposta achada, encontram-se novas perguntas e links para explorá-las.

Sem dúvida as narrativas transmídia vão requerer muitos tratos à bola daqui para frente, porque, do mesmo modo que as tecnologias, a forma de apresentar conteúdos vem mudando vertiginosamente a cada ano. Que a imaginação não fique presa numa ilha e consiga se espalhar por todos os arquipélagos, no tempo real e no virtual. E, se no meio dessa barafunda, você se sentir um pouco “lost”, não tema: é do jogo.

* Publicado em versão reduzida no blog O Olho da Rua ** Jornalista, poeta e músico

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