Busca no site da UFMG

Nº 1702 - Ano 36
5.7.2010

opiniao

Seletividade punitiva e o Estatuto da Criança e do Adolescente

Sheila Maria Madastavicius*

Em recente série de reportagens, o jornal O Globo mostrou que os ex- -colegas de um dos mais perigosos bandidos brasileiros, ao contrário dele, não enveredaram pelo mundo do crime. A principal conclusão desse trabalho, em linhas gerais, parece ser a de que a pobreza não é fator determinante na formação de um criminoso. E devemos dizer que, à primeira vista, esse parece ter sido um louvável esforço no sentido de modificar o imaginário social, dentro do qual a pobreza, em si mesma tão sofrida, acaba sendo também preconceituosamente vista como a grande culpada por toda a violência que nos circunda.

Destacam ainda as matérias em questão a importância da boa escola e a presença interessada da família em garantir proteção aos jovens contra as “armadilhas da criminalidade”, sendo tomado como exceção o bandido que, mesmo usufruindo de tais privilégios, foi por elas capturado.

Nesse momento, somos obrigados a nos perguntar se a verdade, ainda que não seja dita com todas as letras, seria que essa espécie de pobreza privilegiada, que ainda consegue proteger de alguma forma os seus, não deveria ser tomada em um estudo à parte, uma vez que a outra, completamente desprotegida diante de uma estrutura social perversa, não pode deixar de ser percebida como fator fragilizante, a pesar imensamente toda vez que um de seus jovens precisa tomar uma decisão sobre sua vida.

Pois a importância da proteção que lhes falta, e que é oferecida pelas famílias e pelas boas escolas às classes privilegiadas e a essa elite da pobreza, fica evidente, segundo a socióloga Maria Lúcia R. Maia, no grande número de rapazes que começam a trabalhar bem tarde e se mantêm em perfeita harmonia com a sociedade graças ao apoio moral e material da família.

Em síntese, a série de reportagens acaba nos levando a inferir que não seria apenas Fernandinho Beira-Mar a encarnar uma exceção em relação a seus colegas, ao virar bandido. A exceção mais curiosa constatada pelas reportagens nos parece ser exatamente a existência de uma elite a se destacar em relação a uma pobreza completamente desamparada e sem qualquer condição de, por sua vez, amparar qualquer um dos seus, que ficam expostos a muitos riscos.

Importante frisar também que os criminosos vindos da riqueza e que desfrutam de muito mais oportunidades do que o criminoso Fernandinho Beira-Mar talvez devessem ser tomados como exceções tão desprezíveis quanto o bandido em questão. E não se diga em seu favor que bandidos do colarinho branco não matam, pois, apesar de, na maioria das vezes, não sujarem as próprias mãos de sangue, eles acabam se envolvendo em assassinatos de vários tipos, acabando biológica ou moralmente com várias vidas.

Dias depois do destaque dado às matérias aqui tratadas, no dia 14 de junho último, deparamos, no mesmo jornal, com um editorial a enfatizar a necessidade de reformulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que está para completar duas décadas. Seria pura coincidência?

São duas as preocupações, ou melhor, pleitos desse veículo: a eliminação do dispositivo segundo o qual o prontuário do menor infrator é zerado quando completa 18 anos e a redução do limite da inimputabilidade de 18 para 16 anos.

Justifica suas reivindicações, o jornal, inacreditavelmente, com o fato de que aproveitando-se “das imunidades conferidas pela lei aos menores, os chefões do tráfico passaram a recrutar meninos, e a armá-los, já na faixa dos 10, 11 anos”. Ou seja, mais um castigo para a criança e o jovem realmente pobres, que já não contam com a boa escola nem com a presença da família e se veem violentados pela imposição dos criminosos, que sabem como obrigá-los ou convencê-los à sua associação.

Vemos assim que, consciente ou inconscientemente, pode estar por trás de toda essa campanha em torno da reabilitação da pobreza o desejo de acabar com aquele sentimento de responsabilidade que a sociedade tende a alimentar diante dos criminosos vindos das classes menos favorecidas, incutindo-nos a ideia de que, se não é da pobreza que vêm os bandidos pobres, então que sejam eles entregues ao diabo... Quando a verdade é que as leis deveriam ser mais duras em relação aos criminosos do andar de cima. É lá que os privilégios pululam e a impunidade grassa. É de lá que, em cascata, certas ações acabam por produzir mais pobreza, desamparo, criminosos e violência.

Registre-se:

  1. Não espanta o fato de o bandido de que falávamos ter sido um bom aluno, uma vez que nossos criminosos do colarinho branco não só devem ter sido bons alunos no primeiro grau, como também provavelmente o foram na pós-graduação.
  2. Descriminalizar a pobreza não é admitir que existam pobres bonzinhos e pobres mauzinhos, bem como ricos mauzinhos e ricos bonzinhos. A criminalização da pobreza fica evidente, principalmente, não na ideia de que dela provêm os criminosos – isso é preconceito –, mas no fato de que pesa sobre criminosos pobres uma lei que não pesa da mesma forma sobre os bandidos mais favorecidos socialmente.
  3. Seletividade punitiva é a regra segundo a qual se escolhem aqueles que serão punidos por determinados crimes. E, enquanto em nossas cadeias prevalecerem negros pobres, continuaremos vivendo na prática sob a criminalização da pobreza.

Tendo a acreditar que um dia haveremos de viver, de fato, em um Estado de Direito, em que paire a mesma Justiça sobre todos, sem exceção, e em todas as situações, das mais cotidianas e banais às mais sérias. Para chegarmos lá, é a inversão de valores, sustentada no dinheiro e no poder, que precisa ser revista – e não o ECA.

*Especialista em Teoria Literária pela UFRJ. Mantém o blog Cinemeletras.