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Nº 1709 - Ano 36
6.9.2010

Vaccinia vírus é encontrado na Amazônia

Grupos da UFMG localizaram mamíferos soropositivos no Tocantins e intensificam pesquisas sobre a circulação do vírus no país

Ana Maria Vieira

divulgação
Amostra viral isolada pelo ICB e visualizada por microscopia de força atômica

Estudos conduzidos por pesquisadores da UFMG acabam de incluir nova peça no quebra-cabeça sobre a circulação do vaccinia vírus no Brasil. Causador de doença não letal entre humanos e demais mamíferos – mas sem tratamento específico e de impacto econômico e na saúde pública –, o vírus apresenta evidências de haver se disseminado pelo país na última década. Identificado em focos esparsos desde 1999, sobretudo entre bovinos na região Sudeste, o vaccinia teve, recentemente, sua presença confirmada entre animais silvestres da Amazônia, sem contato com humanos, rebanhos de gado ou outros animais a ele até então associados.

A constatação vem de inquérito sorológico realizado por grupo do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade, que resultou em sequenciamento de parte do genoma viral de amostras recolhidas de animais soropositivos, capturados entre 2001 e 2002 por um programa de resgate de fauna, durante a construção de usina hidrelétrica em Lajeado e Ipueiras, estado do Tocantins. À época, foram retiradas amostras de sangue de 344 mamíferos da região – macacos-prego, bugios, quatis, cutias, gambás, tatus, tamanduás e raposas.

A primeira análise revelou que 84 deles (ou 24,4%) tinham anticorpos para Orthopoxvirus, gênero ao qual pertence o vaccinia vírus. A maior soropositividade foi encontrada entre macacos – 25,3% dos macacos-prego e 48,1% dos bugios. Além deles, a soropositividade foi identificada apenas entre quatis e cutias.

A confirmação de que esses animais haviam tido contato com o mesmo tipo de vaccinia vírus presente em outras regiões do país foi obtida com o sequenciamento parcial e a análise do genoma viral de seis amostras positivas das duas espécies de macacos. De acordo com o estudo, essas amostras eram semelhantes geneticamente às de focos de vaccinia bovina ocorridos no país.

“Até 2002, vaccinia bovina era restrita à região Sudeste do Brasil, a 1.400 km da área de estudo”, registra Jônatas Abrahão, aluno de doutorado da UFMG e autor do trabalho, observando que a relação entre macacos infectados e o surgimento do vírus nas regiões rurais do Brasil ainda é desconhecida. Apesar disso, hipótese sobre o papel de roedores no trânsito do vírus entre a floresta e as áreas colonizadas tem sido considerada pelos especialistas.

Implicações

A doença se manifesta na forma de ulcerações e vesículas contagiosas como nas tetas das vacas e nos dedos das mãos humanas

As conclusões do estudo foram publicadas em junho na edição do jornal Emerging Infectious Diseases do Centers for Disease Control and Prevention, o CDC de Atlanta, Estados Unidos. O órgão é referência mundial em estudos epidemiológicos e teve papel estratégico na identificação da Aids na década de 1980. A pesquisa da UFMG recebeu da entidade destaque sob a forma de editorial. “Se os resultados descritos no artigo de Abrahão puderem ser confirmados e ampliados por outros laboratórios, eles têm grandes implicações para a saúde pública”, alerta no texto Richard C. Condit, especialista no tema, da Universidade da Flórida (EUA).

A observação de Condit tem sua razão de ser, pois a reemergência do vírus cria oportunidade para compreender o impacto da ação humana sobre o meio ambiente no desencadeamento de epidemias. Além disso, o alerta do especialista aponta para as consequências que a trajetória do vaccinia vírus levam às pessoas, aos animais, à economia e aos sistemas de saúde e sanitários do país. Conforme relatam pesquisadores, a doença associada ao vaccinia produz ulcerações na pele e vesículas extremamente contagiosas.

É nessas pequenas bolsas que o vírus se multiplica. Em vacas, podem se localizar, por exemplo, nos bicos das tetas, o que facilita sua transmissão para humanos pelo contato das mãos do ordenhador com as lesões ou, supostamente, por via oral, no consumo do leite. As lesões podem, ademais, se espalhar para outras regiões do corpo, como antebraços, genitais, mucosa oral e olhos, acarretando dor intensa e afastando o indivíduo do trabalho.

No Brasil, a maior incidência da doença é verificada em Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Novos focos, no entanto, já foram relatados no Rio Grande do Sul (em cavalos), Maranhão, Mato Grosso e Rondônia. Como a doença ainda é desconhecida, os pesquisadores acreditam que dados de sua ocorrência sejam inconsistentes. “A informação tem aumentado, mas não sabemos se isso decorre da disseminação do vírus ou de sua detecção, pois só recentemente tem sido chamada a atenção para a sua existência”, observa a professora Erna G. Kroon, do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, coordenadora do Laboratório de Vírus, que abriga grupo de estudo sobre vaccinia e outros vírus.

Em Minas Gerais, a região do Serro recebe atenção especial da equipe do ICB. Com descrição de três surtos desde 2005, o local é vulnerável devido à produção de laticínios, como queijo, a partir de leite in natura. “Iniciamos pesquisa sobre fatores de risco naturais e antrópicos que possam estar relacionados com a emergência dessa doença”, relata a professora do ICB Giliane de Souza Trindade, coordenadora do estudo. Um dos objetivos do trabalho é entender o impacto de mudanças ambientais nos surtos, além de identificar o hospedeiro reservatório, que mantém o vírus na natureza.

Sem imunidade

Outro interesse de destaque sobre a reemergência do vaccinia, presente no alerta de Richard C. Condit e dos especialistas da UFMG, relaciona-se à sua história. Durante pelo menos duas décadas, amostras vivas do vírus foram inoculadas na população de todo o mundo, uma vez que serviam como vacina contra a varíola.

“Surtos de casos naturais de infecção pelo vírus vacinal entre animais domésticos, bovinos e suínos eram notificados nas décadas de 1960 e 70 no Brasil e em outros países por conta da transmissão do vírus recebido pela população”, explica Giliane Trindade, uma das autoras do artigo. Ela observa que com o fim da campanha de erradicação da varíola, em 1979, esses casos deixaram de ser descritos, tendo reemergido apenas 20 anos depois, ainda que em contexto diferente: o vaccinia vírus estava saindo diretamente da natureza e infectando animais e pessoas. Apesar desse reaparecimento, identificado no Brasil, em 2000, pela UFMG e pela UFRJ, nenhum estudo demonstrou tratar-se do mesmo vírus vacinal.

Um achado adicional sobre a infecção entre humanos, no entanto, comunicado em outro artigo liderado pelos pesquisadores da UFMG, apresenta novo desafio ao problema. Publicado em abril pela revista Archives of Virology, o estudo Seroprevalence of orthopoxvirus in an amazonian rural village, Acre, Brazil, avaliou soroprevalência de vírus do gênero Orthopoxvirus entre habitantes de um assentamento rural na região de Pedro Peixoto, no Acre. De acordo com os pesquisadores, até então, não havia relatos de focos no local. Apesar disso, soroprevalência de 27,89% foi encontrada entre a população, sendo que 23,38% em indivíduos não vacinados contra a varíola e hoje sem imunidade contra o vaccinia vírus.

Os autores observam que essa é a primeira descoberta no país de soropositividade para Orthopoxvirus em uma localidade sem exposição a surtos anteriores (entre a população e seus animais domésticos e rebanhos de gado). “Podemos supor que as atividades que promovem o contato direto com as áreas naturais, como o corte de madeira, a extração de borracha ou a caça, podem aumentar a probabilidade de infecção”, propõem os especialistas. Eles consideram, no entanto, que novos estudos na região são necessários, sobretudo para esclarecer modos de contato entre humanos e os vírus e identificar a amostra circulante do Orthopoxvirus.

Atualmente, grupos de instituições de pesquisa e ensino do país desenvolvem trabalhos sobre diversos aspectos do vírus, como emergência, circulação, transmissão, mecanismos moleculares, prevenção e tratamento. Uma subespécie diferente de vaccinia vírus ocorre ainda na Ásia. De acordo com Erna Kroon, estão em andamento, na UFMG, pesquisas de vacinas recombinantes e antivirais específicos para a doença.

Artigo: Vaccinia Vírus Infection in Monkeys, Brazilian Amazon
Autores: Jônatas S. Abrahão, André T. Silva-Fernandes, Larissa S. Lima, Rafael K. Campos, Maria I.M.C. Guedes, Marcela M.G. Cota, Felipe L. Assis, Iara A. Borges, Milton F. Souza-Júnior, Zélia I.P. Lobato, Cláudio A. Bonjardim, Paulo C.P. Ferreira, Giliane S. Trindade, e Erna G. Kroon