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Nº 1736 - Ano 37
02.05.2011

opiniao

Vida de ESCREVINHADOR

Tomás Woodall*

Pode parecer estranho, mas há poucos alunos no curso de Letras da Universidade que escrevem e não se envergonham disso. Há muitos até que não arriscam sequer uma linha de prosa nem um versinho. É compreensível: muitos se assustam com o engenho dos grandes autores (quando, na verdade, é a arte que mais impressiona neles) e abandonam o “sonho” de escrever. Penso que isso acontece pelo desconhecimento da generosidade dos escritores mortos, que aceitam de bom grado ser nossos mestres, bastando pedir-lhes ajuda.

Claro que não ajudam qualquer um. É necessário que o leitor tenha o poder da assunção, ou seja, de escrever, em sua mente, cada clássico, ao mesmo tempo que o autor, assumindo seu papel. Algo realmente difícil e que pode beirar a insanidade quando se trata de fazer-se um com os grandes escritores do passado.

Pretendo aconselhar meus colegas, os que não conseguem escrever. Dou algumas dicas, que são mais uma confissão de escrevinhador apaixonado pela Literatura.

Ame a Deus e retrate o Diabo, segredo de Milton.

Escreva também em público, mas com a certeza de que comete um ato libidinoso à vista de todos.

Escreva à mão, para ter certeza de que o sofrimento mental seja acompanhado de dor nos dedos e no pulso.

Se sua cama estiver vazia, leve seus livros para ela e leia deitado.

Tenha muitos livros e não os empreste jamais. Procure se livrar dos ruins.

Leia poesia, mesmo que só se dedique à prosa.

Leia sempre autores nacionais antes de um autor estrangeiro.

Compare a tradução com o original. Aprenda a adivinhar erros de tradução e a dar boas risadas antes mesmo de conferi-los.

Desconfie de uma edição descuidada de poesia brasileira. Descubra as gralhas enquanto declama.

Desconfie mesmo de todas as edições não críticas de Literatura Brasileira.

Escreva um texto bem-humorado quando estiver com raiva e um bem ferino quando calmo e de bem com a vida.

Tente o erotismo mais vulgar de quando em vez para relaxar.

Saiba que alguns livros valem mais do que milhares de pessoas. Converse com seus livros.

Crie pseudônimo e muitos heterônimos, tantos quantos os narradores ou quantos os subgêneros que você for trabalhar.

Nunca tenha vergonha de algo que escreveu nem fique deprimido relendo um texto seu. Para que isso não aconteça nunca, fique atento ao trabalho.

Literatura se faz com trabalho e dor. Se não doer, não há verdade no escrito; se não houve trabalho, reescrita e correção autoral, envie rapidamente para a lixeira, depois de rasgar oito vezes.

É natural perder a fome, o sono e a libido enquanto se trabalha riscando o papel. Se isso nunca aconteceu a você, provavelmente não gosta tanto de escrever quanto pensa que gosta.

Tenha um lugar só seu recheado de obras-primas; será seu escritório ou santuário. Se o solo sagrado for profanado por algum incauto, mate-o ou, pelo menos, expulse-o aos berros. Não seja gentil ou a falta se repetirá.

Acostume-se a ser visitado pelos súcubos à noite. Aprenda a expulsá-los com a força de vontade ou, se preferir, componha um poema para esses seres das trevas: “súcubo lindo/ demônio doce...”.

Se aparecerem íncubos, peça ajuda a um exorcista ou faça como Gore Vidal, Somerset Maugham, Marcel Proust e, dizem, Thomas Mann.

Sempre que sentir uma fissura para escrever, aguente firme até que possa organizar uma ou duas ideias, talvez uns cinco minutos, antes de se lançar ao papel. Nunca corra para o computador em uma hora dessas, porque o monitor vai provocar o famoso branco, que não deixa de ser confusão advinda do medo da falha.

Desconfie dos elogios que receber, mas você tem de receber pelo menos um para seguir escrevendo com confiança. Siga desconfiado, de qualquer forma.

Não siga sempre a Lógica. Siga a expressividade de sua Língua. Ame sua Língua, nem que ela seja o javanês.

Leia de tudo que seja Literatura misturado.

Tenha respeito, mais do que medo, de alguns livros; deixe-os para depois. Não seja ingênuo como alguns, que tentam ler sem compreender nada. As leituras rasteiras não são válidas.

É necessária uma memória especial, que rearranje tudo o que absorver e dê à luz uma quimera ou um hipocentauro. Realmente uma memória perturbadora em quase todas as situações, exceto quando se escreve. Uma memória criativa, enfim.

Seja autodidata. Estude a história literária e encontre os autores que participam da tradição que você pretende seguir e inovar. Não tente sair por aí como um bandeirante, sem um mapa, porque você não vai esbarrar como Cândido no El Dorado.

Aprenda com a História da literatura ocidental, de Otto Maria Carpeaux, um dos grandes eruditos do século 20 que aportou no Brasil. Mas não deixe de estudar a história da Literatura Brasileira e lembre-se do nome de Wilson Martins e de sua História da inteligência brasileira.

Saiba que William Shakespeare é o horizonte impossível de todos os ficcionistas. Não importa de qual mirante olharmos, ele sempre nos encarará, provocando. Nunca discuta com o professor Harold Bloom quanto a isso. Ele está certo. Suspeito que, para igualar o engenho e a arte do amigo de Ben Jonson, precisaríamos unir, em uma só carreira literária, três gênios: Dostoiévski, Stendhal e Cervantes. Curioso sugerir um frankenstein de romancistas para igualar um dramaturgo. Mais estranho é o grande criador de caracteres Dostoiévski permanecer espiritualmente a verstas de distância do homem de Stratford-upon-Avon. Não há o que temer, porém. Resta muito espaço para que outros escritores construam sua obra debaixo desse Ymir anglo-saxão.

*Estudante do 7º período do curso de Letras da UFMG

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