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Nº 1737 - Ano 37
09.05.2011

opiniao

O diagrama da CEBOLA

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

É de autoria do engenheiro Sebastião Bicalho, formado pela UFMG, o modelo comportamental conhecido como “diagrama da cebola”. Esse paradigma, disponível no livro Caridade total (1998), é resultado de uma combinação de teorias psicológicas e insights desenvolvidos pelo autor, com o objetivo de compreender as quatro camadas presentes na constituição humana: “ser”, “estar”, “fingir” e “parecer”. De alimento, a cebola foi promovida à categoria de alegoria da condição humana. Para tanto, o autor fez uma analogia entre os anéis perfeitamente ajustados da planta bulbosa e as camadas que compõem o processo identitário do indivíduo.

O núcleo do diagrama da cebola compõe o estatuto do ser. Segundo Bicalho, “é nesta camada que se encontra a centelha divina em nós; o ponto em que todos nós somos exatamente iguais. Ali, nessa recôndita camada, por muitos ainda ignorada, encontram-se todo o poder e o imenso potencial que pode desenvolver um ser humano”. Recobrindo a camada do ser, vem o estágio do estar, de caráter transitório e relacionado com a fase em que “a criatura começa a desenvolver conceitos errôneos sobre si mesma, geralmente distorcendo sua visão com considerações e preconceitos totalmente distanciados de sua própria realidade”.

Envolvendo esse patamar está a camada do fingir, “a mais reconhecível de todas, uma vez que é com ela que nos expressamos no mundo. É essa camada que tem nome, CPF, carteira de identidade, obrigações sociais; enfim, é ela que representa os diversos papéis que assumimos na vida”. Por último, a camada mais externa do diagrama da cebola é a do parecer, que não pertence ao indivíduo, pelo fato de ser construída pela opinião alheia a respeito do sujeito.

Tal tentativa de identificar as dimensões relativas às nossas escolhas comportamentais me fez lembrar os Aforismos para a sabedoria de vida (1851), escritos pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer. Uma de suas máximas consiste em estabelecer três determinações fundamentais que regem as condutas do sujeito interna e externamente. São elas: o que alguém é, o que alguém tem, e o que alguém representa. A primeira categoria se refere ao sentido mais amplo da personalidade, determinado pelos atributos de saúde, força, beleza, temperamento, disposição ética, inteligência. O segundo parâmetro diz respeito às questões de propriedade e posse. Já o terceiro elemento comporta o que alguém é na representação dos outros. Ganham peso, nesse aspecto, as noções de honra, prestígio social e glória. Comparando o modelo de Schopenhauer ao “diagrama da cebola”, de Sebastião Bicalho, chegamos à conclusão de que: a) aquilo que alguém é se encontra na camada do ser; b) aquilo que alguém tem se movimenta nas camadas do estar e do fingir; c) aquilo que alguém representa está ligado à camada do parecer.

Considerando os paradigmas mencionados, penso que ser é avançar, enquanto estar é parar. A gente nem sempre é a posição em que está. A posição em que a gente está é condicionada por causas temporais e passageiras. Por justa, linda e generosa que seja, a posição em que se está é sempre muito menos do que a gente é. A gente é um composto que inclui, entre tantas outras coisas, a posição em que se está. Somos inclusive a negação da posição em que estamos. Cada vez que estamos deixando de ser para estar, abrimos mão de partes importantes e valorosas, trocando-as por coerências aparentes, por lógicas que a nada levam. O estar é uma categoria do ser. É possível ser sem estar. Porque ser é abrangente, total. Não é possível, porém, estar sem ser. O máximo que é permitido ao estar é coincidir, por vezes, com o ser. O ser pertence ao cosmos. O estar pertence ao momento. O ser é necessário. O estar é contingente.

A posição em que a gente está é a expressão momentânea dos nossos humores, das nossas necessidades e das influências que sofremos. Passará e mudará na medida em que as circunstâncias se alterarem. O que a gente é pertence a uma ordem diversa de valores, feita dos mistérios ou verdades de nossas vidas; das nossas partes desconhecidas; das revelações; das partes sabidas; das nossas relações com o amplo, o total, o uno, o completo.

No mundo das aparências, ser é menos sedutor do que estar. Estar é viver cercado de acólitos, seguidores, aplaudidores, justificadores, beneficiários. Ser é solitário. E aqui estamos falando da solidão sem mágoa, que não é fruto do egoísmo nem do medo, da dor, da sensação de abandono e rejeição, nem resultado da fuga, do desterro, da perseguição e da morte de pessoas que amamos ou da morte de sentimentos que amamos nas pessoas. Trata-se da solidão que me dá a medida e o significado de meu corpo e de minha pessoa. É um estar no mundo com a gente mesmo por puro prazer, um jeito de viver que ninguém pode viver pelo outro. Ou seja, um ponto onde somos nós mesmos mais completamente, onde podemos melhor assumir nossos potenciais criativos para o amor e para o trabalho, onde somos mais lúcidos e mais saudáveis, onde, por isso tudo mesmo, podemos mais claramente compreender e nos relacionar com o mundo e com as outras pessoas. Nesse contexto, compreende-se melhor o elogio da ‘indivi-dualidade’, presente nos versos de Danislau Também, em O herói hesitante: autobiografia de um anônimo (2005): “caminhar a dois só/vai ser possível se/for cada qual pelo/próprio caminho”.

Infelizmente, vivemos o tempo dos que estão. Dos que desistiram de ser para estar. Todos com o melhor dos propósitos e as mais elevadas teorias de solidariedade humana, mas muitos “estando” e poucos “sendo”. O tempo de quem desistiu de ser para estar gerou guerras, destruições, deixando como herança, apenas e tão somente, uma profunda vontade de Ser: porque a gente é sempre mais do que a posição em que está.

* Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília. Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Graduando em Letras (Português e Inglês) pela Faculdade Pitágoras

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