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Nº 1751 - Ano 37
3.10.2011

opiniao

O ULTRASSINCERO e o SUPERDISSIMULADO

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Dita em conversa de bar e registrada no blog da República do Pensamento (www.republicadopensamento.blogspot.com), eis a máxima do poeta Luiz Cláudio Pimentel, brasiliense dos bons: “prefiro ser ultrassincero a superdissimulado”. Elogio visceral feito à integridade, entendida como a arte de ser sincero, a partir de uma existência elevada pela honestidade. Enquanto o ultrassincero gosta do papo reto, o superdissimulado vem com conversa mole. Cazuza e Arnaldo Brandão, na música O tempo não para (1988), mostraram muito bem como funciona a mentalidade do trapaceador: “Tuas ideias não correspondem aos fatos”.
Os justos, por sua vez, depositam fé em que o conhecimento da verdade ilumina a inteligência a caminho da sabedoria. Uma pessoa íntegra tem como virtude ser autêntica, sem agir com prepotência. Problematizando dilemas com retidão ilibada, o sujeito sincero, sem medo de “ver o oco”, se espelha em princípios éticos e os defende com disposição democrática e habilidade exemplar.

Ao longo da história, várias acepções marcaram a palavra sinceridade. Do latim sine cera, isto é, sem cera, a expressão “sincera” remonta à criação de abelhas. O mel sem cera se refere ao mel puro proveniente da geleia real. Nesse sentido, compreende-se o sentido de pureza que está atrelado à noção de sinceridade. Quando o marceneiro errava com o formão, fazia uso da cera de abelha para encobrir o dano cometido no móvel. Agindo assim, ele disfarçava o erro, ocultando-o com astúcia. Fazendo uso da esperteza, não assumia com sinceridade a autoria do deslize.

Há 2.500 anos, o teatro grego já oferecia elementos curiosos a respeito da dissimulação e sinceridade humanas. Na representação de uma peça, os atores, ao interpretarem seus papéis, costumavam fazer uso de uma máscara feita de argila que seguravam na frente do rosto com uma varetinha. O nome conferido pelos latinos à referida máscara foi persona. Brotaram daí os termos “personagem” e “personalidade”. Os romanos levaram adiante esse procedimento teatral, empregando, contudo, outro recurso: eles misturavam cera de abelha com pigmentos vegetais, formando uma pasta que era passada no rosto. Com a máscara, o indivíduo fingia ser outra pessoa. Estendendo tal propósito ao contexto da etiqueta social, foi se consagrando o entendimento de que uma pessoa dissimulada se configura como detentora de uma postura mascarada, pois, ao apresentar “duas caras”, ela aparenta ser o que não é. A sinceridade, por sua vez, caracteriza o indivíduo íntegro, sem máscara.

Um indivíduo que sinceramente reflete, de maneira constante, sobre suas atitudes é alguém que se encontra mais próximo de obter o equilíbrio nos vários âmbitos da vida

Viabiliza-se a vida coletiva, sendo sinceros uns com os outros. Preserva-se, assim, o norte da nossa igualdade de existência, ancorado no fundamento legítimo da liberdade de expressão. Ser dissimulado é acreditar que “a verdade dói”, preferindo os podres poderes aos sensatos saberes. Quem se apega ao poder desdenha a crítica, pois esta põe em xeque os princípios falaciosos que regem sua autoimagem, exibindo suas contradições aos olhos de outrem. O sincero não tem rabo preso, porque sua mente é livre e o coração, tranquilo. O dissimulado, a exemplo de Brás Cubas, personagem de Machado de Assis, acredita que “a franqueza é a primeira virtude de um defunto”.

Um indivíduo que sinceramente reflete, de maneira constante, sobre suas atitudes é alguém que se encontra mais próximo de obter o equilíbrio nos vários âmbitos da vida. Aristóteles falava que o ignorante afirma, o sábio duvida e o sensato reflete. Por conta disso, cabe considerar que uma das regras da convivência civilizada reside na capacidade do ser humano de ser sincero sem ser rude. A rudeza é a sinceridade insensata, isto é, uma forma de agressividade verbal em que se diz aquilo que vem à boca sem qualquer reflexão crítica. Normalmente, tal comportamento leva o sujeito a se comportar como “dono da verdade”, ignorando o fato de que ele é somente o autor de um ponto de vista. Atingindo o patamar da ofensa, falar o que vem de imediato à mente se desenha frequentemente como um costume discursivo de rejeição ao outro, no qual se ressalta o vício arrogante de achar que só existe um ponto de vista a ser considerado: o próprio. Exigindo de nós empenho na combinação entre firmeza e delicadeza, a sinceridade deve ser respaldada pela doçura do bem, aliada à dialética do esclarecimento.

Problematizando a sensibilidade plana, pertencente à vaidade, ao campo das aparências, devemos priorizar a nossa sensibilidade plena, que fundamenta o exercício da autoconsciência. Nesse sentido, compreendo a sinceridade como atitude de autoanálise, ou seja, exame crítico de si mesmo. Trata-se de um verdadeiro ofício de escavação interior, conforme ilustra Adélia Prado, no poema Exausto (1976): “quero o que antes da vida/ foi o profundo sono das espécies/, a graça de um estado./Semente./Muito mais que raízes”. Buscar a profundeza da vida requer sinceridade, visto que dissimular é se comprometer com o engano superficial. No íntimo sentido da existência, a sinceridade, portanto, se configura como condição sine qua non para a compreensão autêntica de nossas limitações e potencialidades.

* Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília. Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG. Graduando em Letras (Português e Inglês) pela Faculdade Pitágoras.

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