Busca no site da UFMG

Nº 1773 - Ano 38
30.4.2012

opiniao

Libras, uma língua

Cristiana Torres Klimsa* e Fernando Guedes**

Se você é brasileiro, português ou angolano, imagino que nunca tenha se perguntado por que e como aprendeu a língua portuguesa. Ou que o cidadão francês não questione o porquê de ter aprendido o francês, e o germânico de falar alemão. Acredito também que nunca deva ter-se perguntado como adquiriu o idioma com o qual se comunica, ou ainda se seria melhor ter aprendido outra língua em detrimento da que usa.

Tentando responder, talvez diga que aprendeu a falar uma língua porque seus pais, avós, tios, amigos, enfim, porque a sociedade de uma forma geral fala essa mesma língua. Acrescentando: foi na convivência com eles que aprendeu naturalmente o português, por exemplo. Mas, dificilmente responderá que gostaria de ter aprendido primeiro a língua X em vez da Y.

Ter determinada língua como materna não é escolha sua. O ambiente cultural em que você nasce é que dita a forma com a qual deverá se expressar. Amala e Kamala foram adotadas por uma mãe loba que lhes proporcionou uma vivência da cultura dos lobos na selva e, assim, elas internalizaram sua comunicação e hábitos. Isso nos mostra que o meio ao nosso redor é tão importante quanto a natureza humana.

Voltando aos questionamentos, você pode afirmar também que aprendeu a falar ouvindo. Seus ouvidos lhe possibilitaram um retorno daquilo que começou a falar e, assim, por meio da audição, sua voz foi sendo reconhecida por si e pelos outros e sua comunicação, estabelecida.

Agora, pergunte-se então como isso acontece com as pessoas surdas. Talvez nunca tenha refletido sobre as implicações de não ouvir. Aquele que não ouve, provavelmente, é, para você, uma pessoa deficiente, que possui uma limitação, pois não vive as experiências da mesma forma que a maioria das pessoas consideradas normais.

Essa é uma forma muito comum de se pensar a pessoa com surdez. Mas não a única. Dando vez ao surdo, abre-se a oportunidade para se conhecer outro discurso, que privilegia a alteridade. Aí o fato de não ouvir não é a questão-chave ou o problema a ser enfrentado; é apenas uma característica, que não define o sujeito.

O surdo se define a partir de outro referencial que não o inferioriza diante do outro dito normal, mas o diferencia. É o atributo da visualidade que caracteriza o sujeito surdo, pelo grau de importância que essa dimensão assume em sua vida. A visão é a principal referência, por meio da qual as experiências são vivenciadas por ele.

O relato de Ben Bahan (1989), encontrado no livro Aprender a Ver, exemplifica bem essa argumentação. Renomado professor da Língua de Sinais Americana e escritor surdo, ele propõe que pessoas com tal característica sejam denominadas de pessoas visuais:

“Usando essa palavra eu me coloco na posição das coisas que eu posso fazer, ao invés das que não posso fazer. Identificando-me como uma pessoa visual, isso explicaria tudo ao meu redor: os aparelhos TDDs, os decodificadores, as campainhas luminosas, a leitura labial e a emergência de uma língua visual, a língua de sinais americana” (WILCOX e WILCOX apud BAHAN, 2005:17).

Ao longo da história, entretanto, o surdo foi visto como incapaz e a língua de sinais como incompleta e subalterna à língua oral. Durante séculos, ela não foi reconhecida como meio comunicacional profícuo, e os surdos foram obrigados a aprender a língua oral de seu país para que tivessem alguma participação social.

Apesar das cicatrizes dessa imposição oralista e de suas vertentes atuarem até hoje, temos grandes avanços que legalizam a língua de sinais e oferecem à pessoa surda a possibilidade de se comunicar pela língua sinalizada do país em que vive.

No Brasil, os brasileiros surdos se comunicam pela Língua Brasileira de Sinais (Libras), oficialmente reconhecida em 2002 pela lei 10.436. É uma língua com características e gramática próprias, capaz de expressar quaisquer fatos ou ideias abstratas.

A chamada “lei da Libras” completou sua primeira década no dia 24 de abril e há muito o que ser comemorado. Significativos avanços aconteceram a partir dela e do decreto que a regulamentou em 2005, e em cujas disposições preliminares encontramos importante definição que delineia a forma como se deve conceber o surdo:

“(...) considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras” (BRASIL, 2005, art.2°)”.

Um grande marco sancionado na lei é o estabelecimento do bilinguismo/biculturalismo para o surdo, que tem na Libras sua primeira língua e o português (na modalidade escrita) como segunda língua. É o que defende a comunidade surda em suas lutas por um mundo mais acessível. Por comunidade surda entende-se: membros surdos e ouvintes (não surdos) usuários de língua de sinais que participam, direta ou indiretamente, do movimento surdo.

O campo da educação vem se destacando e conquistando espaços, mas ainda patina no formato como propõe as ações destinadas aos surdos sem considerá-los no processo de concepção e gestão da política. Contudo, as áreas da saúde e da assistência social têm ações, ainda que incipientes, de atendimento a esse usuário. Há muito o que se fazer.

Outro ponto positivo reside no fato de que ampliamos o acervo linguístico de nossa nação e podemos contar com mais um idioma para expressar nossa brasilidade.

E você, caro leitor e cidadão brasileiro, já se arriscou na comunicação em Libras? Ela também é uma língua que o identifica, afinal é brasileiríssima.

* Graduada em Psicologia e graduanda em Letras/Libras. Tradutora e intérprete de Libras na UFMG
** Especialista em Responsabilidade Social e graduado em Comunicação Assistiva – Libras e Braille. Tradutor e intérprete de Libras na UFMG