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Nº 1776 - Ano 38
21.5.2012

opiniao

Disciplina é liberdade

* Marcos Fabrício Lopes da Silva

Em Poética lição (2010), Virgilene Araújo foi de uma sapiência providencial: “educar e pesquisar/na perspectiva da complexidade/sem perder a ternura/ou mesmo o tesão/Eis a questão:/ Ação/reflexão/Reflexão/ação”. O pensamento complexo, conforme ressalta Edgar Morin, tenta religar o que o pensamento disciplinar e compartimentado separou e fragmentou. É uma rede solidária que visa abarcar tudo o que constitui nossa realidade; que tenta dar conta do que significa originariamente o termo complexus: “o que tece em conjunto”, e responde ao apelo do verbo latino complexere: “abraçar”. Ação e reflexão, como ressalta a poeta, precisam vir abraçadas, pois a prática significa colocar a mão na massa, e a teoria, imaginar a pizza e refletir sobre o seu processo de criação.

Ao promover perspectivas complexas, em vez de reduzi-las, temos condições de ­nortear ideais e realizações, partindo do princípio da dualidade e não do dualismo. O dualismo é diverso da dualidade. O dualismo considera as coisas separadas, enquanto na dualidade as vemos juntas como dimensões da mesma e única realidade. A dualidade existe e revela a complexidade do real. Nesse sentido, conseguimos, por exemplo, encontrar elementos para compreender afirmações caras à encruzilhada epistêmica, a exemplo do aparente paradoxo presente na máxima “Disciplina é liberdade”, que integra a canção Há tempos (1989), sucesso da Legião Urbana. Disciplina é o plano de voo comprometido com a viabilidade do nosso pleno voar, a liberdade.

Yves de La Taille, em Nos labirintos da moral (2009), trata a disciplina como sendo “força de vontade”. Força de vontade para não sucumbir à vontade. Ou seja, discernimento para não cair na esparrela da libertinagem. Nesse sentido, em Reverberações (1976), a poeta Henriqueta Lisboa destaca o desafio em torno do alcance da virtude especial em questão: “Disciplina/Aplainar de fragas/difíceis/na defensiva/princípios”. Liberdade não se confunde com a possibilidade de fazer tudo aquilo que nos apetece. Como adverte o apóstolo Paulo: “Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém” (1Cor 6, 12). Entre o proibido e o permitido está o oportuno.

A disciplina pode ser vista como a capacidade, pessoal ou grupal, de criar uma convergência de interesses para o alcance de um propósito. A convergência de interesses pode ser construída através de diferentes estratégias, as quais geram formas e combinações distintas de poder. Segundo o filósofo José Bernardo Toro Arango, no artigo “O poder como empoderamento democrático” (2008), existem três tipos de convergências: autofundadas (poder democrático), impostas (poder autoritário) e compradas (poder clientelista).

Nas convergências autofundadas, diferentes atores, com interesses distintos (convergentes e/ou divergentes total ou parcialmente) diante de um propósito, reconhecem-se em suas diferenças e podem, por meio do debate, do diálogo e da negociação, ceder e receber cessões de interesse para articular e projetar um interesse coletivo orientado para fazer possível a dignidade humana. O fundamento é a liberdade e a autonomia.

Já nas convergências impostas, um ou vários atores com capacidade de gerar temor ou coação definem e impõem o propósito e o tipo de convergência, ignorando a diversidade de interesses dos outros atores implicados. O fundamento é o medo real ou suposto.

Por último, nas convergências compradas, um ou vários atores com capital econômico e/ou simbólico pedem e obtêm (com dinheiro e/ou promessas) de outros atores implicados a renúncia ou a negação dos seus próprios interesses para aderir ao interesse do comprador. O fundamento é a dependência.

No poder democrático, a disciplina se comporta como um bem, pois, em sua justa e necessária medida, serve à liberdade, favorecendo o desenvolvimento dos sujeitos, a partir da construção de suas respectivas práticas e discursos. Porém, nos poderes autoritário e clientelista, a disciplina é posta a serviço, não da necessidade, em sua justa e necessária medida, mas de privilégios, injustiças e iniquidades. Quando assim acontece, a disciplina se degrada e se transforma em instrumento liberticida, avesso à liberdade, trabalhando para criar o seu avesso, a opressão.

Estamos condenados à disciplina, tanto quanto o estamos, segundo Sartre, à liberdade. A liberdade não é possível a não ser na ordem. Mas a única ordem que produz liberdade é a que Eu construo, em cooperação com o Outro, para fazer possível a dignidade humana para todos. Mais abrangente do que uma “política do ser”, estamos falando aqui de uma “poética da Relação”, conforme expressa Édouard Glissant, em Introdução a uma poética da diversidade (2005).

Ainda sobre o princípio de que “disciplina é liberdade”, a linguagem se mostra um caso exemplar, uma vez que ela é a institucionalização da necessidade humana de intercâmbio alteritário. Ela permite que a comunicação intersubjetiva transcorra ao nível do simbólico, isto é, a partir de um termo terceiro, consensual, social, cuja estrutura garante a inteligibilidade dos discursos. O código linguístico, patrimônio comum, é esse termo terceiro a partir do qual os sujeitos se fundam.

Para que o código linguístico seja comum a todos, ele exige de todos um pacto e um consenso. Há, no código linguístico, uma estrutura profunda, a langue (língua), cuja lógica torna possível a construção do discurso de cada um. A parole (fala), invenção de cada um, uso livre que cada um faz do código, só é possível a partir da langue. A langue é limite, regra, prescrição. Conforme salientava o linguista Ferdinand de Saussure, a língua é um sistema abstrato, partilhado por uma comunidade de falantes, que ganha realidade concreta na fala. A liberdade da fala confere sentidos à direção dada pela disciplina da língua.

* Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG.