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Nº 1794 - Ano 39
15.10.2012

Ver o não visto

Pessoas de idades e formações diferentes experimentam a criação de textos literários em oficinas semanais no Conservatório UFMG e no campus Pampulha

Itamar Rigueira Jr.

"Foi provando um aqui, outro ali, até sentir um sabor de aventura que o prendeu da primeira página à última (...) Era A volta ao mundo em 80 dias e Nicodemus viajou para uma vida nova, nunca dantes imaginada. (...) encontrou o pobre do Augustus, já morrendo de inanição. (...) Tentou esfarelar umas páginas de autoajuda, forçar as migalhas na boca exangue de Augustus, ele não aceitou, cuspiu. Buscou Filosofia, pior ainda. (...) Pegou um livro de cozinha tradicional portuguesa com ilustrações lindíssimas, e escolheu criteriosamente para a emergência uma ilustração leve, doce, de linda cor amarela, apetitosa: papas de carolo.”

Quando terminou de ler seu conto sobre três “ratinhos de biblioteca”, Jane Alves recebeu elogios e incentivo do professor e escritor Ronald Claver, coordenador da Oficina de Criação Literária, para que investisse na história, que, segundo ele, pode ser transformada num livro infantil. A professora aposentada do Departamento de Química do ICEx é uma entre cerca de 30 frequentadores da atividade promovida pela Organização dos Aposentados e Pensionistas da UFMG (OAP). Os encontros, semanais, acontecem às terças, no Conservatório, e às quartas, na sede da entidade na Praça de Serviços do campus Pampulha.

Os alunos trazem para todas as sessões um texto – que pode ser um poema, uma crônica, ou de qualquer outro gênero – relacionado a tema proposto na semana anterior pelo professor. Aposentado depois de 28 anos lecionando Língua Portuguesa no Colégio Técnico (Coltec) da UFMG, Ronald Claver diz perceber que os frequentadores ganham mais liberdade e se sentem muito bem ao experimentar um espaço para mostrar o que produzem. “Escrever também é hábito. Além da confraternização, os encontros representam um estímulo para que os participantes pratiquem”, explica o coordenador.

'Alongamentos'

Na sessão da quarta-feira, 3 de outubro, acompanhada pela reportagem do BOLETIM, após a leitura do “para casa” por todos os alunos – que ensejou comentários sobre a grafia de palavras e um ou outro fenômeno descrito pelos textos –, Ronald Claver iniciou uma série de exercícios rápidos que ele chama de “alongamentos”. Provocado por quatro situações, duas delas em forma de imagens, o grupo rascunhava – e lia depois em voz alta – suas impressões. Uns foram mais literais, outros reagiram com esboços de poesia. Algumas intervenções provocaram risos, outras, silêncio nitidamente emocionado.

As motivações para participar das oficinas de criação literária são variadas. Vagner Moreira dos Santos, veterinário e professor aposentado da UFMG, tomou “bombas” na escola por causa do Português. “Sempre tive trauma de escrever, e hoje não abro mão de estar aqui, em contato com a cultura e com a sensibilidade”, ele disse.

Os encontros ajudam a professora Maria Lucia Bois a lidar com a perda da mãe e de um irmão. “Nossos encontros são espontâneos, neles eu extravaso e ganho energia para a vida”, ela revelou. A artista plástica Abadia França quer ampliar conhecimentos. “Cada vez mais a arte pede uma abordagem múltipla, sinto necessidade de saber mais, e a literatura é um bom caminho”, comentou.

Com mais de 30 livros publicados, promotor de eventos literários na cidade, Ronald Claver se especializou “empiricamente” na produção de textos. Ele enfatiza que os alunos têm “liberdade de ir e vir”, ou seja, podem suspender sua matrícula e voltar a frequentar a oficina a qualquer momento. “As aulas têm temas independentes, não há sequência predeterminada”, diz o professor, que trabalha sob certos princípios: pouca teoria, mais elogios que críticas e ênfase também nos textos não literários.

A ideia é estimular a expressão escrita, que para muitas pessoas é novidade. Na obra que Claver sugeriu como inspiração para os textos que os alunos deveriam levar no encontro seguinte, Otto Lara Rezende diz a certa altura: “O hábito suja os olhos e baixa a voltagem. (...) O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de tão visto, ninguém vê.” Ao convidar as pessoas a sair da rotina e experimentar a expressão pela literatura, a oficina de Ronald Claver descobre o poeta adormecido no engenheiro, na professora, no veterinário, na dona de casa.