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Nº 1878 - Ano 40
29.09.2014



Encarte


opiniao

A voz das ruas

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

Só atingiremos a verdadeira liberdade se estivermos atentos à eletricidade da multidão. Completaram um ano as manifestações de junho que entraram para a história como grande vitória da cidadania brasileira. As utopias da política ali estiveram presentes, sendo expressas pelo desejo de transformação social desde seus fundamentos. É na formulação utópica que a sociedade encontra modelos para resistir à aceitação passiva do status quo. Os politicamente acomodados costumam desmerecer a utopia, tratando-a como “utopiada”, conforme salientou José Paulo Paes, no poema Seu metaléxico (1973). Os politicamente inconformados miram-se em versos libertários, como os de Mário Quintana, em Das utopias (1951): “se as coisas são inatingíveis... ora!/Não é motivo para não querê-las.../Que tristes os caminhos, se não fora/A mágica presença das estrelas!”.

Nas ruas de todo o Brasil, a população aguerrida se empenhou na luta por uma política que viabilizasse sobretudo a promoção legítima do bem comum. Caras-lavadas de ficha suja não podem imperar na administração pública nacional. Mais e mais caras-pintadas de ficha limpa precisam ser eleitos. A urna é eletrônica, mas o voto não pode ser automático. Quem tem ojeriza à política é governado por quem não tem. E os maus políticos se revelam como aqueles que usam o poder público em prol de interesses privados. Em oposição a tamanha ilegalidade, as manifestações democráticas também ajudaram o Brasil a se fortalecer em matéria de liberdade de expressão. Defensor desse princípio fundamental, Lima Barreto, na crônica Elogio da morte, de 19/10/1918, foi certeiro neste atestado: “se tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas. O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana. Entretanto, no Brasil, não se quer isso. Procura-se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes”.

Explorando outro ângulo da mesma matéria, o músico-compositor e líder da banda Os Paralamas do Sucesso, Herbert Vianna, identificou, na canção Luís Inácio (300 picaretas), de 1995, a educação precária como fator decisivo para a perpetuação de políticos corruptos e arrogantes no poder: “Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou/São trezentos picaretas com anel de doutor/(...)Eu me vali deste discurso panfletário/Mas a minha burrice faz aniversário/Ao permitir que num país como o Brasil/Ainda se obrigue a votar por qualquer trocado/Por um par de sapatos, um saco de farinha/A nossa imensa massa de iletrados/Parabéns, coronéis, vocês venceram outra vez/O congresso continua a serviço de vocês/Papai, quando eu crescer, eu quero ser anão/Pra roubar, renunciar, voltar na próxima eleição”.

Absurdos elitistas querem reforçar o ceticismo frente ao cenário eleitoral que nos espera. É triste notar, por exemplo, que a segurança repressiva vem se impondo como sistema prioritário. Unidades pacificadoras armadas até os dentes. Contraditório, não? O país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, tem cerca de 550 mil detentos, segundo o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias, do Ministério da Justiça. Somos a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. A política prisional brasileira tem suas “vítimas preferenciais”. A pobreza e a baixa escolaridade caracterizam a esmagadora maioria de detentos. Entre brancos, indígenas e amarelos, os negros se concentram em maior número no sistema prisional brasileiro: cerca de 267 mil.

Desde os tempos coloniais, as cadeias estão majoritariamente ocupadas pelo perfil do público descrito. Basta consultar as Cartas chilenas (1789), escritas por Tomás Antônio Gonzaga. No referido texto, o poeta árcade denuncia também o sadismo opressor que se expressa em atos prisionais do tipo: “(...) agarra a um e outro e num instante/Enche a cadeia de alentados negros./Não se contenta o cabo com trazer-lhe/Os negros que têm culpas, prende e manda/Também, nas grandes levas, os escravos/Que não têm mais delitos que fugirem/Às fomes e aos castigos, que padecem/No poder de senhores desumanos./Ao bando dos cativos se acrescentam/Muitos pretos já livres e outros homens/Da raça do país e da europeia/Que, diz ao grande chefe, são vadios/Que perturbam dos povos o sossego”.

Enquanto ainda for utilizado esse padrão policialesco para diferenciar cidadãos de primeira e segunda classe, a opressão triunfará como regra. A grosseria do temor não joga no mesmo time da delicadeza do respeito. Precisamos urgentemente resolver um problema crônico da cultura política brasileira: na aparência ela é Chico Buarque; na essência, Emílio Garrastazu Médici. Ainda vivemos a ditadura da desigualdade. Lampejos democráticos de igualdade acontecem. Esse cenário distorcido levou os brasileiros às ruas, com a polícia no encalço. Como bem observou o jornalista Ricardo Boechat, as manifestações foram um reflexo do seguinte drama: poucos, no Brasil, têm o preparo do nadador olímpico César Cielo para encarar uma piscina. A maioria está se afogando, clamando por um salva-vidas. Além de importantes vitórias no campo pragmático das reivindicações, os protestos de junho de 2013 tiveram o grande mérito de proclamar que diuturnamente – não só em eleições – cabe-nos zelar pelo fazer político honesto e civilizado.

* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG.