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Nº 1898 - Ano 41
06.04.2015

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Minas de todos os santos

Tese de doutorado investiga tradição dos mineiros de batizar lugares com nomes de santos e santas

Hugo Rafael

Na segunda metade do século 6, igrejas particulares começaram a ser construídas em honra de um santo, que passava a simbolizá-la e dar-lhe o nome. Tal denominação se estendia também às terras de seu entorno. Essa tradição encontrou terreno fértil no católico estado de Minas Gerais, como esclarece a tese de doutorado de Ana Paula Mendes Alves de Carvalho, defendida no Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da UFMG, no ano passado. No trabalho, a pesquisadora investigou a preferência regional pelo emprego sistemático de hagiotopônimos – nomes de lugares referentes a santos e santas da tradição católica – em território mineiro.

“Apoiada na inter-relação léxico, cultura e sociedade e para relacionar o topônimo a fatores históricos e socioculturais da comunidade, parti da hipótese de que, em Minas Gerais, o emprego de nomes religiosos na toponímia estaria diretamente relacionado ao processo de povoamento do estado”, explica Ana Paula de Carvalho, professora de Língua Portuguesa no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG), campus de Ouro Branco.

Os dados obtidos passaram por descrição e análise linguística, levando em conta o ambiente cultural de sua inserção. A pesquisadora investigou casos de variação, mudança e manutenção linguística, por meio da comparação entre o registro dos topônimos em mapas históricos (dos séculos 18 e 19) e contemporâneos (a partir do século 20), reunidos desde 2005 pelo Projeto Atemig.

A investigação verificou como ocorre a distribuição geográfica dos hagiotopônimos nas 12 mesorregiões de Minas. Para isso, foram reunidos todos os nomes de cidades, vilas, povoados e fazendas, os chamados “acidentes humanos”, e rios, córregos, ribeirões, cachoeiras, morros, serras, entre outros “acidentes geográficos” ou “físicos”, das 853 cidades mineiras, totalizando, até o momento, 85.391 topônimos.

“Em nossa pesquisa, voltamos a atenção para os 5.649 hagiotopônimos, distribuídos entre nomes de santos, de santas e múltiplas invocações à Virgem Maria, a que chamamos, em nosso estudo, de mariotopônimos”, conta Ana Paula. Com base nessas três categorias, a pesquisa constatou que tanto a tendência contemporânea quanto a histórica privilegia os nomes de santos. “A quantidade de nomes de santos (3.801 ocorrências) é 2,3 vezes maior do que a de santas (1.658 ocorrências) e 20 vezes superior ao de mariotopônimos (190 ocorrências)”, avalia.

Dados contemporâneos indicam que os hagiotopônimos com nomes de santos representam 67,8% das aparições frente aos 26,3% dos nomes de santas e 3,4% dos mariotopônimos. Na análise histórica, constataram-se percentuais semelhantes: 67,3%, 29,3% e 5,9%, respectivamente.

Proteção e intimidade

A maior presença de hagiotopônimos foi registrada nas mesorregiões da Zona da Mata, do Vale do Mucuri, do Vale do Rio Doce e Sul/Sudoeste do estado. “Esta última se destaca por ser a região por onde entraram os bandeirantes em busca de ouro e pedras preciosas à época do povoamento. As três primeiras, situadas na porção leste e de povoamento mais tardio, caracterizam-se por seus solos férteis que serviram a plantios diversos e, consequentemente, ao abastecimento da capitania”, explica a pesquisadora.

Essas regiões, que fazem fronteira com outros estados, eram marcadas, na época de sua ocupação, por presença da Mata Atlântica. “Acreditamos que o significativo número de ocorrências hagiotoponímicas nessa região se deva ao fato de que, ao se aventurar mata adentro em busca de novas terras, o homem, frente ao desconhecido, pedia proteção a Deus por meio da invocação dos santos e santas de sua devoção”, contextualiza Ana Paula.

Entre os nomes de santos com maior aparição no levantamento, destacaram-se nos dois perfis (contemporâneo e histórico) Santo Antônio, São José, São João, São Domingos, São Sebastião, São Francisco e São Miguel. “Apesar de não aparecerem nos dados históricos, São Pedro, São Bento, São Geraldo, São Lourenço, São Joaquim e São Vicente são muito recorrentes nos dados contemporâneos, figurando em todas ou em pelo menos 11 das 12 mesorregiões”, avalia Ana Paula.

“Alguns nomes de santos aparecem com o antropônimo representado por um hipocorístico, como é o caso de Santo Antoninho, São Joãozinho, São Joanico, São Juanico, São Mateuzinho, São Miguelzinho, São Bentinho e São Bentão. Com exceção do último, o sufixo de diminutivo pode, nos demais, denotar intimidade e afeto do denominador em relação ao santo escolhido para nomear os acidentes geográficos em sua volta”, explica.

Na categoria de santas, Ana, Rita, Maria, Bárbara, Isabel e Luzia lideram as aparições. “Cabe ressaltar a presença significativa de Santa Anna nos registros históricos e Santa Ana/Santana nos dados contemporâneos, sobretudo nas mesmas regiões do Estado por onde passaram as bandeiras. Também com ocorrências em todas as mesorregiões, destacam-se, na contemporaneidade, Santa Rosa, Santa Clara e Santa Helena”, ressalta Ana Paula.

“Assim como ocorre com as denominações masculinas, há nomes de santas que, diferentemente dos demais que predominam na Zona da Mata, destacam-se mais em outras mesorregiões, o que parece caracterizar um culto regional”, avalia a pesquisadora, que cita Santa Luzia e sua variante Santa Lúcia, que aparecem com realce no Sul/Sudoeste, Santa Terezinha, com incidência nos vales do Rio Doce e do Mucuri, e Santa Marta, também no Vale do Rio Doce.

Maria, Maria

A aparição dos mariotopônimos nos dados históricos é quase duas vezes maior do que nos registros contemporâneos. “Acreditamos que essa diferença pode ser explicada por dois motivos: o primeiro relaciona-se diretamente ao fato de que, a partir da segunda metade do século 18, o número dessas ocorrências começa a cair. O segundo motivo refere-se à legislação toponímica que, na primeira metade do século 20, recomenda, entre outras coisas, a não adoção de topônimos compostos de mais de duas palavras. Assim, os municípios mineiros Carmo do Cajuru, Conceição dos Ouros e Dores do Indaiá foram, anteriormente, chamados de Nossa Senhora do Carmo do Cajuru, Nossa Senhora da Conceição dos Ouros e Nossa Senhora das Dores do Indaiá”, explica Ana Paula.


Vestígios de religiosidade

O número de fazendas com nomes religiosos aparece com destaque na pesquisa. “Em relação aos mariotopônimos, são 151 ocorrências, ou 85% dos acidentes humanos encontrados. Nesse caso, podemos aventar a hipótese de que os nomes de fazenda passam exclusivamente pelo crivo da subjetividade, diferentemente da nomenclatura de municípios, que, além de serem regidos por legislação toponímica, dependem da aprovação da comunidade”, avalia Ana Paula.

Em relação aos nomes de santos e santas, o número de fazendas também se destaca. “Entre os 3.801 nomes de santos analisados, 2.268 referem-se a acidentes humanos, o que equivale a 60% do total, entre os quais 1.494, ou 65%, são fazendas. Em relação aos nomes de santas, de um total de 1.658, a referência a acidentes humanos é feita por 1.117 nomes, o que corresponde a 67% do total. Destes, as fazendas somam 870 ocorrências, ou 78% dos dados”, afirma.

Nessa categoria, a tendência observada nos dados gerais de hagiotopônimos se inverte, com maior ocorrência de mariotopônimos, seguidos por nomes de santas e santos. “Essa inversão pode ser explicada pelo fato de que, em território mineiro, as fazendas são preferencialmente designadas por hagiotopônimos femininos. Entre eles, a maioria refere-se a nomes de santas não reconhecidas oficialmente pela Igreja”, avalia a pesquisadora. Essa ocorrência, conforme dados da pesquisa, poderia ser explicada pela escolha de nomes para homenagear as mulheres próximas do denominador, como esposas, mães, filhas e avós.

Subjetividade

No caso dos acidentes físicos, que ocorrem em número bem menor em todas as categorias analisadas, a pesquisa mostra que os córregos figuram como os que mais receberam denominações hagiotoponímicas, representando 59,4% dos nomes de santos, 66% dos nomes de santas e 42% dos mariotopônimos.

“Podemos dizer que os hagiotopônimos em território mineiro mantiveram-se ao longo dos séculos, sobretudo em fazendas e córregos, cuja motivação denominativa prende-se exclusivamente à subjetividade individual do denominador e, por serem referências em propriedades particulares, as alterações toponímicas são mais raras. Por outro lado, os motivos para escolha do nome de um munícipio, além de observar legislação específica, pautam-se pela subjetividade coletiva e, muitas vezes, também por interesses políticos”, avalia a pesquisadora.

A pesquisa também revelou que muitas denominações referentes aos municípios mineiros foram substituídas ao longo dos anos, principalmente as relativas a mariotopônimos. “Entretanto, esses topônimos, pelas reduções referentes aos títulos que acompanham a expressão Nossa Senhora, deixaram vestígios de sua origem religiosa em todo o território mineiro, o que pode ser observado pela quantidade considerável de denominações toponímicas atuais constituídas dos determinantes Carmo, Conceição e Dores”, exemplifica.

Tese: Hagiotoponímia em Minas Gerais
Autora: Ana Paula Mendes Alves de Carvalho
Orientadora: Maria Cândida Trindade Costa de Seabra
Programa: Pós-graduação em Estudos Linguísticos da Faculdade de Letras da UFMG
Defesa em 26 de agosto de 2014