Egressas da UFMG isolam anticorpos monoclonais que bloqueiam ação do vírus da mpox
Estudo abre caminho para tratamentos e vacinas contra a infecção, classificada como emergência de saúde pública global
Por: Marcus Vinicius dos Santos | CTMM
Desde 2022, a mpox é classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como emergência de saúde pública global. Naquele ano, foram registrados 135 mil casos, com cerca de 200 mortes, em 130 países, incluindo o Brasil, um dos mais afetados fora da África. A infecção, causada pelo vírus MPXV, é da mesma família da varíola, uma das doenças mais letais do século XX – apesar de erradicada, ainda é um desafio mundial.
Em busca de respostas, duas pesquisadoras mineiras, que atuam no Centro de Pesquisa de Vacinas e Preparação para Pandemias do Hospital Monte Sinai, nos Estados Unidos, publicaram, na revista Cell, no fim de agosto, um estudo inovador, que descreve três anticorpos humanos capazes de se ligar a uma proteína específica do vírus (A35) e bloquear sua disseminação. Elas identificaram um alvo inédito para o combate à mpox.
A primeira autora, Raianna Fantin, de Belo Horizonte, é doutora em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG, enquanto sua orientadora nos Estados Unidos, Camila Coelho, natural de Governador Valadares, é doutora pelo Programa de Ciências Farmacêuticas da Faculdade de Farmácia.
Esse avanço abre caminho para o desenvolvimento de tratamentos antivirais e vacinas contra toda a família desse vírus, a orthopoxvírus. A professora do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) Erna Geessien Kroon, coordenadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Poxvírus (INCT Pox), rede de pesquisa nacional focada nessa área, destaca que a estratégia baseada em anticorpos monoclonais “abre caminho para terapias mais eficazes e direcionadas a populações vulneráveis, como pessoas que vivem com o vírus HIV”.
Também professora do Departamento de Microbiologia do ICB, Jordana Reis destaca que a tecnologia usada já foi testada com sucesso in vitro e em animais. “A liderança de cientistas formadas na UFMG é motivo de orgulho e evidencia a força da ciência brasileira no cenário internacional”, avalia Jordana.
Entrevista
A seguir, as autoras do estudo, que moram em Nova York, dão detalhes do trabalho e afirmam que a experiência de internacionalização e a própria formação recebida na UFMG foram decisivas para alcançar essa conquista. Elas também refletem sobre ciência brasileira, com suas virtudes e dificuldades, e sobre os desafios enfrentados pelas mulheres que enveredam pelo universo da pesquisa.
Quais são as atribuições de seu laboratório no âmbito do Centro de Pesquisa de Vacinas e Preparação para Pandemias no Hospital Monte Sinai?
Camila Coelho – Nosso foco é compreender como o sistema imune, em especial as células B e os anticorpos, respondem a patógenos emergentes. Investigamos regiões vulneráveis nesses vírus e bactérias, locais estratégicos onde os anticorpos podem se ligar e neutralizá-los. É ciência básica, mas com enorme potencial de aplicação, porque abre caminhos para tratamentos e vacinas.
Em linhas gerais, o que vocês descobriram?
Raianna Fantin – Nós isolamos três anticorpos monoclonais humanos potentes que reconhecem a proteína A35 do vírus mpox. Esses anticorpos bloquearam a disseminação viral em ensaios in vitro e protegeram camundongos contra infecções letais, tanto de mpox quanto de vaccinia, um vírus da mesma família. Observamos ainda que pessoas que tiveram mpox e se recuperaram produzem naturalmente anticorpos que reconhecem a mesma região da proteína A35. Esse ponto é fundamental, porque indica que a resposta imunológica natural se alinha ao que encontramos em laboratório, e isso se traduziu em evolução clínica mais favorável para os pacientes.
Quais efeitos clínicos foram observados nesses pacientes com níveis mais altos de anticorpos?
Raianna Fantin – Eles apresentaram um início mais tardio dos sintomas, uma recuperação mais rápida, e nenhum precisou ser hospitalizado. É um indício de que essa resposta pode ser decisiva na proteção contra a progressão da doença.
O trabalho descreve como uma limitação o fato de os anticorpos terem sido isolados de apenas um paciente. Como superar esse desafio nas próximas etapas?
Raianna Fantin – Essa é uma limitação relevante, porque impede a generalização imediata dos achados para toda a população. Células específicas para essa proteína são extremamente raras, o que torna seu isolamento um processo desafiador. Por outro lado, o fato de termos identificado anticorpos que reconhecem a mesma região em outros indivíduos convalescentes é um sinal positivo e sugere que a A35 pode ser amplamente encontrada na população e servir de alvo promissor para terapias.
Quais são os próximos passos até transformar a descoberta em tratamento?
Camila Coelho – Já temos a patente aprovada. Agora buscamos parceiros interessados em licenciar a tecnologia e avançar para os testes clínicos de fase 1 em humanos. Mas o processo até esse anticorpo ser testado em humanos e ser licenciado pode demorar alguns anos. Isso requer grande investimento financeiro, clínico e científico.
Como a UFMG marcou a trajetória de vocês?
Camila Coelho – Foi decisiva. Minha orientadora, a professora Ana Paula Fernandes, da Faculdade de Farmácia e do CTVacinas [Centro de Tecnologia de Vacinas], sempre estimulou a internacionalização da ciência. Desde cedo, tive contato com pesquisadores de fora, colegas fazendo doutorado sanduíche e programas de cooperação. A Pró-reitoria de Pós-graduação também manteve um foco muito importante na internacionalização. Isso abre muitas portas de interações com pesquisadores estrangeiros.
Raianna Fantin – Na UFMG, eu aprofundei minha formação em imunologia e em doenças infecciosas. Estar em contato direto com as pessoas que sofriam com a malária, em áreas endêmicas, trouxe uma perspectiva única e deu muito mais sentido ao meu trabalho, além de ter sido fundamental para o meu desenvolvimento como cientista. Além disso, a internacionalização promovida pela Universidade, em especial pelo Capes-PrInt, foi o que me conectou à Camila. Essa rede foi determinante para que eu pudesse chegar ao Mount Sinai e desenvolver pesquisas desse porte.
Que diferenças observam entre Brasil e Estados Unidos em relação ao ambiente científico?
Raianna Fantin – A ciência brasileira é de alta qualidade, mas enfrenta dificuldades estruturais. Aqui, nos Estados Unidos, há menos burocracia, mais estabilidade de financiamento e melhor infraestrutura. No Brasil, a instabilidade e a demora na importação de insumos atrasam descobertas. Nossas instituições já produzem ciência de ponta. Com recursos mais estáveis, poderiam avançar com muito mais agilidade e encabeçar mais descobertas pioneiras.
Camila Coelho – Vivemos uma fase em que as revistas de alto impacto estão procurando trabalhos de qualidade vindos da América Latina e da África. Não é obrigatório sair do Brasil para se destacar. Vejo com muito otimismo a produção de imunologia e vacinologia feita no país.
O cenário científico internacional mudou após a pandemia de covid-19?
Camila Coelho – Mudou bastante. Raianna e eu submetemos um artigo de opinião à Lancet Infectious Diseases sobre isso. A frase que inicia o texto é: “É impressionante como a pandemia de covid-19 inaugurou uma nova era na imunologia humana, impulsionando esforços sem precedentes para estudar as respostas imunes a diferentes vírus em todo o mundo”. Hoje, os estudos de acompanhamento de infecção e de vacinação são ferramentas poderosas para entender a imunidade protetora em humanos. Há mais espaço para jovens cientistas, inclusive para aqueles que atuam em países emergentes e desejam permanecer neles.
Quais desafios vocês enfrentaram como mulheres cientistas?
Camila Coelho – Já passei por várias situações. Em Nova York, o ambiente é mais progressista, mas em viagens ainda encontro atitudes machistas. Lembro de um imunologista que me perguntou como eu conseguia estar em um jantar científico tendo uma filha. Respondi: “e como você está aqui, se tem três filhos?”. São pequenos embates, mas que precisamos enfrentar para abrir caminho para outras mulheres.
Raianna Fantin – Também vivi momentos em que precisei me afirmar mais para ser ouvida ou reconhecida. Ao mesmo tempo, tive a sorte de contar com orientadoras mulheres e uma rede de apoio que me fortaleceu. Essa rede mostrou, na prática, que a presença feminina em posições de liderança pode transformar o ambiente científico em um espaço mais inclusivo e estimulante.
Que conselhos daria a jovens pesquisadores brasileiros?
Camila Coelho – Persistam. Continuem trabalhando. Se for necessário mais tempo de treinamento, por meio do pós-doutorado e outras modalidades, treine mais. Lembre-se sempre de manter conexões nacionais e internacionais. E o mais importante: continue comunicando ciência ao público para sensibilizar nossos governantes sobre a importância do investimento público em pesquisas no estado de Minas Gerais. Tente buscar agências de fomento para financiar suas idas a congressos e seu desenvolvimento. Há muitas oportunidades de bolsas para estudantes de países de renda média.
Fonte
Assessoria de Imprensa da UFMG
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