O ‘coisário’ do cassino-museu: pesquisa mergulha na história de prédio modernista na Pampulha
Em seu trabalho de doutorado em Artes, Marconi Drummond Lage reúne acervo de mais de 800 itens relacionados ao antigo cassino e ao MAP, ocupantes do mesmo edifício
Por Itamar Rigueira Jr.
Não existe, segundo Marconi Drummond, um acervo gerado da história da ocupação do prédio. “O MAP não chegou a produzir material robusto, e restou o que eu chamo de lacuna, fissura, ruína”, diz o pesquisador, que fez toda a sua formação em artes visuais na Escola de Belas Artes da UFMG, atua como curador independente e exerceu essa função no MAP de 2006 e 2010. Lá, Marconi cuidou de exposições artísticas, históricas, panorâmicas, de publicações e do programa de residências artísticas. Dessa experiência, segundo ele, origina-se a tese.
Marconi encontrou material histórico, iconográfico, artístico e documental em diversas instituições, no Brasil e no exterior, como a Biblioteca Nacional, a Escola de Arquitetura da UFMG, o Instituto Moreira Salles e o Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York. Os mais de 800 itens (ou “coisas”) já catalogados compõem o que ele denomina “coisário”. Há referências dos mais variados tipos sobre o próprio edifício, como projetos arquitetônicos, azulejos, os jardins de Burle Marx –, ao cassino – propagandas de espetáculos, menus, fotografias e filmes de época – e ao museu, entre as quais, registros de obras de arte, exposições e diferentes eventos.
“Para construir o repositório, que eu denomino de coisário cassino>>museu, resgato coisas extraviadas de um prédio e de um museu sobreviventes, em permanente processo, desconstruído, paralisado, amortizado, descontinuado”, diz Marconi Drummond.
Por iniciativa do então prefeito de Belo Horizonte (1940-1945), Juscelino Kubitschek, o prédio foi construído junto com a Casa do Baile, a Igreja de São Francisco e o Iate Tênis Clube – os edifícios, projetados por Niemeyer e localizados à beira da lagoa, formam o Conjunto Arquitetônico da Pampulha, marco da arquitetura moderna, reconhecido pela Unesco, em 2016, como Patrimônio Cultural da Humanidade. O cassino funcionou de 1942 a 1946, ano em que os jogos de azar foram proibidos no Brasil, e o museu público municipal foi fundado em 1957. A sede da instituição está fechada desde 2019, aguardando obras de restauração e de segurança no sistema elétrico, entre outras intervenções.
Pensadores e artistas-colecionadores
O trabalho que valeu o título de doutor a Marconi Drummond é dividido em dois volumes, dois sistemas de escrita paralelos. Um é a tese propriamente dita, outro, o acervo inventariado. O pesquisador lançou mão, como referências teóricas, das ideias de pensadores como Walter Benjamin, Michel Foucault e Mario Pedrosa. Ele também recorreu a artistas que foram ou são “colecionadores-arquivistas-enciclopédicos-catadores”, ou seja, que lidam, em sua produção, com métodos museológicos e práticas arquivísticas. Marcel Duchamp, Aby Warburg, Rosângela Rennó, Gerhard Richter e Marcel Broodthaers formam esse outro grupo que deu suporte à formulação da tese.
No texto de seu trabalho de doutorado, Marconi percorre o caminho acadêmico – hipótese, metodologia, resultado –, estabelece conexões entre os acervos, explora a prática da exposição – um dos capítulos, dedicado às “coisidades”, é como um “dispositivo expositivo”, segundo ele, uma espécie de mostra em formato digital – e aborda questões culturais, artísticas e históricas que irradiam de tudo isso. Na montagem do acervo, à exaustiva pesquisa de campo, seguiu-se a etapa da tipificação dos itens, da organização e constituição do repositório digital.
“Para além da história do cassino-museu, lanço mão de minha experiência como curador do próprio MAP, olho para os artistas que trabalham como colecionadores e curadores. Trata-se, de certo modo, de uma experiência artística e curatorial”, descreve Marconi Drummond.
‘Deambulação’
O repositório digital foi concebido sobre a matriz do software livre Tainacan, desenvolvido para a criação de acervos digitais e organização de coleções. Não há um caminho preestabelecido, rígido. A ideia, como diz o artista, é “criar uma experiência de navegação imersiva, uma deambulação”. São três as entradas oferecidas para o percurso na plataforma: coisidade, tipologia e procedência. O usuário encontra itens inesperados como o cardápio do grill-room do cassino em 11 de julho de 1942 com mensagem manuscrita pelo delegado Renato de Lima que apontava infração à lei no uso de língua estrangeira (no caso, o francês).
Há muito mais. Classificada nas “coisidades” lagoa e água, aparece uma nota de venda de peixes ao posto policial da vizinhança. Marconi encontrou, num catálogo de material de revestimento em faiança, na França, o padrão de azulejo que foi redesenhado para o prédio do cassino-museu. Juscelino e a esposa, dona Sarah, surgem muito rapidamente, dançando, em filme feito em evento no cassino.
A plataforma oferece ao visitante a possibilidade de selecionar itens (coisas), sob qualquer critério, para compor o seu próprio coisário. E essa lista de acervo de um museu particular pode ser impressa em pdf e em planilha do Excel.
“Os usuários podem também doar itens para a constituição do coisário. A coleção é formada também de contribuições voluntárias”, anuncia Marconi Drummond. Mas nada disso, na prática, é para logo. O repositório não pode ainda ser aberto ao público. O pesquisador vem providenciando o licenciamento dos itens, e esse processo promete ser demorado. A boa notícia é que o acesso restrito é possível: ele admite atender, desde já, individualmente, pesquisadores com interesse justificado no acervo.
“Esse meu trabalho tem, entre outros, o objetivo de franquear material para novas investigações e estudos”, afirma o artista-curador-colecionador, enfatizando que o acervo é muito amplo e diversificado, e o repositório e o texto da tese, naturalmente, não esgotam o assunto.
Tese: Coisário cassino>>museu: no entre-espaço de um cassino extinto e um museu em processo
Autor: Marconi Drummond Lage
Orientador: Stéphane Huchet
Programa: Pós-graduação em Artes
Defesa: 24 de junho de 2024
Mais lidos
Semana
-
Arqueologia da repressão UFMG coordena escavações arqueológicas no antigo DOI-Codi de São Paulo
Grupos da Universidade, da Unicamp e da Unifesp buscam vestígios para recontar o passado do local onde o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado há 50 anos
-
'Nós com a máquina' Nem tecnológico, nem só político: grande desafio da IA é ético
Em encontro do Grupo Tordesilhas, pesquisadores indicam caminhos para que tecnologia possa colaborar com inclusão social e com redução das desigualdades no país e nas universidades
-
Processo seletivo Divulgados novo Documento Norteador e Guia do Candidato do Seriado UFMG
Documentos vão auxiliar na preparação dos candidatos; DN recebeu contribuições de 107 professores, dois terços dos quais vinculados a escolas públicas
-
Programe-se UFMG aprova calendário escolar de 2026
Principais procedimentos e datas da rotina acadêmica estão estabelecidos em resolução do Cepe
-
Escola democrática Expoente da pedagogia crítica tem agenda de atividades na UFMG com especialistas em educação básica e formação de professores
Emérito da Universidade de Wisconsin-Madison, Michael Apple é o titular da cátedra Fundep Magda Soares do Ieat
Notícias por categoria
Arte e Cultura
-
Memória e pertencimento ‘Panorâmica’ exibe ‘Yékity’, poema visual sobre o Vale do Jequitinhonha e suas múltiplas vozes
Documentário faz um mergulho sensível na cultura e identidade coletiva de um dos territórios mais simbólicos do Brasil
-
Ancestralidade ‘A dança das memórias’: livro infantil aborda busca por bisavó mineira da filósofa Sueli Carneiro
Professora Ivana Parrela debruçou-se sobre os arquivos de Maria Gaivota, ancestral de uma das principais referências do feminismo negro no país; lançamento será nesta quinta, dia 13, na sala da Congregação da ECI
-
BH. A cidade de cada um Jornalista Rosaly Senra lança livro sobre o bairro Santa Efigênia
Evento será neste sábado, 8, na loja Made in Beagá, situada no próprio bairro, onde também está o campus Saúde da UFMG, uma de suas principais referências
-
Saberes plurais Wanderson Flor, da UnB, defende a subjetividade negra como ‘resistência criadora’
Em conferência de abertura do Novembro Negro, o filósofo propôs uma reflexão sobre epistemes, estética e sensibilidade como dimensões de luta e existência
-
CIRCUITO UFMG Artista e educadora indígena Liça Pataxoop inaugura mural na Faculdade de Educação
O têhey pescaria de conhecimento objetiva compartilhar ensinamentos do povo pataxoop