7 de setembro: como o Grito do Ipiranga ecoa nos dias de hoje
Pesquisadores e lideranças de movimentos sociais analisam, em reportagem da Rádio UFMG Educativa, os sentidos da independência à luz da história, da política e das lutas dos grupos minoritários
Por Ruleandson do Carmo
Mais de dois séculos depois do Grito do Ipiranga, dado por Dom Pedro I, em 7 de setembro de 1822, quando o Brasil se tornou independente de Portugal, a soberania nacional se vê ameaçada em meio a ataques políticos dos Estados Unidos da América: novas taxas estão sendo impostas às exportações brasileiras, bem como restrições a integrantes do Supremo Tribunal Federal e do governo.
Para a historiadora Heloísa Starling, coordenadora do Projeto República da UFMG), apesar das ameaças, o Brasil continua independente, por atender a três critérios históricos e políticos: fronteiras definidas; autonomia política e jurídica; e não submissão a outro país.
Ainda assim, para a pesquisadora, o Brasil vive, hoje, a terceira maior tentativa de interferência estadunidense na soberania brasileira: “Até os anos 1960, na Guerra Fria, a América Latina não era uma prioridade política. Após a Revolução cubana e com o vínculo de Cuba com a então União Soviética, o governo do presidente dos EUA à época, Kennedy, se assusta, e os EUA começam um processo de tentativa de interferência na América Latina, especialmente no Brasil, porque faz fronteira com quase todos os outros países latinoamericanos. A segunda tentativa é o envio de uma força-tarefa caso houvesse resistência que impedisse de fato o golpe militar em 1964. O terceiro momento é agora, em uma tentativa de ditar as leis no Brasil”, descreve a historiadora.
Conceito múltiplo
Em meio às tentativas de interferências estadunidenses, o governo brasileiro tem reagido e resistido, buscando fortalecer outras parcerias comerciais internacionais, como com a China e com o México, além de reafirmar a autonomia dos três poderes. Por isso, a professora do Museu Paulista da USP, a também historiadora Cecília Helena Oliveira, afirma: “o Brasil segue independente. Entretanto, o conceito de independência é múltiplo. A independência pode se referir à autonomia para gerir a vida de forma independente, mesmo fazendo parte da coletividade. Por isso, comunidades e agrupamentos populacionais podem se ver também como independentes, como eram os povos originários que estavam na América antes da colonização. Independência, autonomia, soberania são temas da política e se renovam a cada momento histórico e exigem, portanto, esforço, concentração e muitas vezes, uma luta social pela sua manutenção”.
A voz dos excluídos
Questionando o conceito (ou subvertendo a ideia histórica) de que o Brasil é um país independente, o Grito dos Excluídos, há 30 anos, vai às ruas por diversas cidades do Brasil para dizer que muitos grupos ditos minoritários socialmente – conjunto de pessoas com direitos sociais negados – ainda não conquistaram a independência e o acesso ao básico garantido pela Constituição Cidadã de 1998.
O movimento foi iniciado em 1995, 10 anos após a redemocratização brasileira, iniciada após o fim da ditadura (1864-1985). Em Minas Gerais, o sociólogo Frederico Santana Rick integra a coordenação do Grito, cujo tema, neste ano, é Cuidar da casa comum e da democracia é luta de todo dia.
O mote faz alusão à defesa da soberania nacional em meio às interferências estadunidenses, reforça a importância das lutas sociais para a manutenção da independência, numa perspectiva social: “O Grito dos Excluídos em 7 de setembro e a luta diária dos movimentos sociais são uma maneira fundamental de se questionar a fragilidade da nossa democracia e da nossa soberania e mesmo da nossa independência. Somos ainda um país de economia bastante agroexportadora e de pouca elaboração: somos dependentes tecnológicos, somos dependentes em termos de desenvolvimento econômico e social. Estamos vivendo um franco processo, há algum tempo, de desindustrialização, o que faz com que a nossa população tenha acesso a empregos de menor qualidade, de menor remuneração, de precarização, tudo isso fragiliza a nossa independência enquanto país e enquanto coletividade social”, argumenta Frederico Santana.
Paralelamente ao movimento do Grito dos Excluídos, pesquisadores de universidades públicas estudam os movimentos sociais e defendem a inclusão de grupos marginalizados socialmente. Dois exemplos emblemáticos são ligados à Universidade Federal da Bahia (UFBA) e à Universidade de Brasília (UnB) . O primeiro é o professor aposentado da UFBA e sociólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, mais antiga organização brasileira de defesa da população LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e demais orientações não heterossexuais e identidades não cisgênero), iniciado em 1980. O segundo é o professor aposentado da UnB e jurista José Geraldo de Souza Junior, fundador do grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua, iniciado em 1989, um dos mais importantes grupos de estudo do direito das pessoas em situação de rua, entre outros temas.
Em relação à comunidade LGBT+, levantamento do GGB, com base em dados de 2024, indicam cerca de uma morte violenta de pessoa LGBT+ a cada 36 horas. Por isso, Mott vê a independência brasileira como relativa: “Tivemos conquistas importantes, como o direito de casar, à herança, de adotar crianças e as cotas para pessoas trans na universidade. Porém, o Brasil continua sendo o campeão mundial de assassinatos de LGBT, uma morte a cada 16 horas, segundo pesquisa da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, O Estado Brasileiro, o município, as secretarias Estaduais de Direitos Humanos, da Justiça e o Ministério da Justiça Federal não garantem a nossa liberdade, a nossa independência, a nossa, o nosso direito a viver”.
No Brasil, 260 mil pessoas vivem em situação de rua, segundo dados do Programa Polos de Cidadania da UFMG, em parceria com a Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). De acordo Souza Junior, da UnB, o Grito ‘Independência ou morte’, do Grito do Ipiranga, não significou superar o colonialismo que organizava a vida social e que alienava da dignidade social diversos grupos subjugados socialmente. Hoje, séculos depois, sabemos que a independência de um país e de um povo é a capacidade de assumir, enquanto identidade política e social, um projeto de sociedade. O povo precisa se constituir como capaz de elaborar politicamente tal projeto e ter autonomia. A condição de exclusão da população de rua indica alienação completa não só da cidadania, mas da própria condição de redução da dignidade humana”.
A historiadora da UFMG Heloísa Starling reafirma o conceito de independência brasileira no sentido histórico de fronteiras estabelecidas, não submissão e leis próprias e ressalva: “O problema é que nós vivemos em um país profundamente desigual. Isso não tem nada a ver com a nossa independência. Isso tem a ver com o país profundamente desigual, com uma série de políticas que têm de ser feitas e, eventualmente, estão sendo feitas. É a questão de você pensar que a democracia está sempre em movimento, é o que dá movimento a ela é a luta por direitos. Então, avançar na questão dos direitos é fundamental para expandir a prática democrática e a vida democrática”.
Reportagem em áudio
A Rádio UFMG Educativa produziu uma reportagem especial em áudio sobre o tema, com a participação de lideranças e integrantes de outros movimentos sociais, como indígenas, pessoas com deficiência e movimento negro. A emissora disponibiliza o conteúdo completo, produzido pelo jornalista Ruleandson do Carmo, com sonoplastia de Cláudio Zazá, em áudio, nas principais plataformas sonoras, como Spotify e SoundCloud.
Ficha técnica
Produção, reportagem e edição de texto e conteúdo: Ruleandson do Carmo
Sonoplastia e edição de áudio: Cláudio Zazá
Mais lidos
Semana
-
Arqueologia da repressão UFMG coordena escavações arqueológicas no antigo DOI-Codi de São Paulo
Grupos da Universidade, da Unicamp e da Unifesp buscam vestígios para recontar o passado do local onde o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado há 50 anos
-
'Nós com a máquina' Nem tecnológico, nem só político: grande desafio da IA é ético
Em encontro do Grupo Tordesilhas, pesquisadores indicam caminhos para que tecnologia possa colaborar com inclusão social e com redução das desigualdades no país e nas universidades
-
Processo seletivo Divulgados novo Documento Norteador e Guia do Candidato do Seriado UFMG
Documentos vão auxiliar na preparação dos candidatos; DN recebeu contribuições de 107 professores, dois terços dos quais vinculados a escolas públicas
-
Escola democrática Expoente da pedagogia crítica tem agenda de atividades na UFMG com especialistas em educação básica e formação de professores
Emérito da Universidade de Wisconsin-Madison, Michael Apple é o titular da cátedra Fundep Magda Soares do Ieat
-
Estudos Culturais UFMG sedia, em 2026, primeira edição da conferência ‘Crossroads in cultural studies’ na América do Sul
Propostas de apresentação de trabalhos podem ser submetidas até 20 de dezembro
Notícias por categoria
Coberturas especiais
-
Reparações Francia Márquez propõe ‘decolonizar o saber’ e reforçar protagonismo negro na produção do conhecimento
Vice-presidenta da Colômbia fez conferência na UFMG na qual defendeu a valorização das epistemes africanas e a transformação estrutural nas universidades para enfrentar o racismo e as desigualdades históricas
-
Ho-ho-ho! Papai Noel dos Correios visita campus Pampulha para incentivar adoção de cartinhas
Postos da tradicional campanha de apadrinhamento foram montados no ICEx e na Praça de Serviços
-
Laços fortalecidos Grupo Tordesilhas tem nova presidência e formaliza três adesões
No encerramento do 24º encontro, reitora Sandra Goulart transmitiu o cargo para a professora María Inmaculada González Pérez, da Universidade de La Laguna, da Espanha; UFMS, Unifesspa e Ufam passam a integrar a rede
-
Farmacologia das palavras Pesquisadores e artistas celebram legado de ‘Drummond farmacêutico’
Evento explorou interseções entre ciência, sensibilidade e criação literária na obra do poeta itabirano, que completaria, neste ano, 100 anos de formado no curso de farmácia da UFMG
-
Encerramento Semana do Conhecimento premia projetos de todos os segmentos acadêmicos
Mais de 3 mil trabalhos foram apresentados, e 77, reconhecidos como destaque nesta sexta, 17