Empreendedorismo social: empresa fornece produtos adequados às exigências do sistema prisional
‘É um negócio chamado dignidade’, define empresário e ex-detento em reportagem especial da Rádio UFMG Educativa
Por Ruleandson do Carmo
Comprar um simples biscoito, uma peça de roupa ou um frasco de xampu pode ser uma tarefa complexa quando o destino desses produtos são as unidades prisionais brasileiras. Itens comuns do cotidiano precisam obedecer a regras rigorosas, que variam de presídio para presídio, o que torna a entrega de produtos a pessoas encarceradas um desafio para amigos e familiares — mulheres, em sua maioria. Foi para enfrentar esse cenário que nasceu, em Belo Horizonte, a Loja do Preso PJ Ele, iniciativa empreendedora do empresário Péricles Ribeiro, ex-detento. “É um negócio chamado dignidade”, resume.
A loja, localizada no bairro Barro Preto, próxima a fóruns e pontos de partida de ônibus rumo a presídios da Região Metropolitana e do interior de Minas Gerais, oferece kits com roupas, alimentos e itens de higiene adequados às exigências das unidades prisionais. Eles podem ser adquiridos presencialmente ou enviados por correio. “Estamos aqui para ajudar, abraçar, nunca para dar as costas, seja o delito que for”, afirma Péricles, destacando que a proposta é acolher principalmente as famílias que enfrentam o estigma da prisão.
Renda e autonomia
A Loja do Preso é um exemplo de empreendedorismo social, conceito que alia práticas de mercado à resolução de problemas sociais. “O empreendedorismo pode ser uma ferramenta muito importante para atender demandas específicas de grupos marginalizados, como é o caso das famílias de pessoas privadas de liberdade”, explica Sophia Leal, presidenta do Enactus UFMG e integrante da rede internacional Enactus, que atua em mais de 35 países com foco em projetos autossustentáveis e de empoderamento comunitário.
Cerca de 500 kits são vendidos mensalmente pela Loja do Preso, permitindo que pessoas em situação de privação de liberdade recebam produtos adequados às normas das unidades e que suas famílias tenham uma alternativa menos constrangedora e mais prática para manter o vínculo com seus entes. “Esse tipo de negócio gera renda e autonomia para quem está inserido nessa cadeia produtiva, que muitas vezes também são pessoas em contexto de vulnerabilidade”, destaca Camila Andrade, vice-presidenta do Enactus UFMG.
Além de atender a uma demanda prática, o empreendedorismo social, segundo as representantes da Enactus, “promove uma cultura de responsabilidade e inovação”, transformando os negócios em ferramentas de transformação social. Como ressalta Sophia, esse modelo conecta “uma necessidade real a uma solução sustentável, não apenas ambientalmente, mas também financeiramente”.
Dignidade e esperança
A história de Péricles Ribeiro é a semente da Loja do Preso. Encarcerado por quase 90 dias em 2016, ele viu a esposa ter produtos recusados ao tentar entregá-los no presídio. “Ela também teve que adequar as roupas e até os calçados para poder me visitar”, relembra. Após sair da prisão e enfrentar o preconceito no mercado de trabalho, decidiu empreender com foco em quem enfrentava as mesmas dores. “Acontece o crime, ele é ajudado pela família. Mas quem está aqui fora, que é a família, merece um abraço. Ela merece dignidade”, afirma.
Ribeiro lidera uma equipe de cinco pessoas que estuda as regras específicas de diferentes presídios para montar os kits permitidos. Além da loja física, o atendimento é feito pelo WhatsApp, e os produtos são entregues em diversas cidades de Minas. A escolha do nome do negócio também foi estratégica: “Loja do Preso”, ainda que criticada por alguns, é facilmente encontrada em buscas e se torna referência para quem precisa dos produtos.
Os números que envolvem a população carcerária brasileira são alarmantes. O Brasil tem quase 900 mil pessoas privadas de liberdade, das quais mais de 663 mil vivem em unidades prisionais, constituindo a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Só em Minas Gerais, são mais de 65 mil encarcerados. O sistema penal, no entanto, não consegue prover alimentação suficiente nem produtos básicos, como roupas e itens de higiene. “Os presos ficam por muitas horas sem se alimentar. Muitas vezes, só conseguem completar a alimentação com o que recebem das famílias”, afirma Miriam Estefânia, presidenta da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade de Minas Gerais.
Segundo Miriam, além das restrições arbitrárias de entrada de produtos, há constantes humilhações a quem tenta prestar assistência. “Mesmo levando o que está na lista permitida, o policial pode cismar e não deixar entrar. Se reclamar, o familiar ainda é punido”, relata. Essa realidade é ainda mais cruel porque cerca de 30% dos presos ainda aguardam julgamento, e apenas 12% estão presos por homicídio, segundo dados do Ministério da Justiça.
A Loja do Preso e outras iniciativas semelhantes espalhadas pelo Brasil mostram que o empreendedorismo social pode ser uma resposta efetiva a problemas crônicos do sistema penal. Ao atender necessidades específicas, como as das pessoas encarceradas e suas famílias, esses empreendimentos também criam oportunidades de recomeço — como foi o caso de Péricles. Mensagem postada em perfil da Loja do Preso em uma rede social resume o propósito : “Mesmo atrás das grades, ninguém merece ser esquecido.”
Reportagem em áudio
A Rádio UFMG Educativa disponibiliza a reportagem completa, produzida pelo jornalista Ruleandson do Carmo, com sonoplastia do jornalista Breno Rodrigues nas principais plataformas sonoras, como Spotify e SoundCloud.
Ficha técnica
Produção e reportagem: Ruleandson do Carmo e Breno Rodrigues
Edição de texto e de conteúdo: Ruleandson do Carmo
Sonoplastia e edição de áudio: Breno Rodrigues
Pessoas entrevistadas: Péricles Ribeiro (empresário), Miriam Estefânia (Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade de Minas Gerais), Sophia Leal (Enactus UFMG) e Camila Andrade (Enactus UFMG)
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