Dor que vira arte: livro revela como o teatro pode ser vetor de cura simbólica
Resultado de pesquisa de pós-doutorado da professora Denise Pedron, do TU, obra promove diálogo entre processos cênicos e a psicanálise
Por Hellen Cordeiro
Em meio às marcas profundas do trauma, o teatro pode encontrar na dor caminhos para extrair uma potência criativa. A arte, assim, torna-se espaço de elaboração e cura simbólica, dando corpo às experiências traumáticas individuais – como o abandono, o racismo e a violência sexual –, mas que atravessam toda uma coletividade. O tema é abordado de forma crítica e sensível no livro Teatro e trauma: três experiências de criação, de autoria da professora Denise Pedron, do Teatro Universitário da UFMG.
Publicada pela Editora Javali, a obra é resultado da pesquisa de pós-doutorado em Psicologia e Teatro da docente, desenvolvida no Instituto de Psicologia e na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e no Instituto Universitário de Lisboa, em Portugal. O trabalho foi defendido em 2023.
“Às voltas com a elaboração de meu projeto de pós-doutorado, eu estava buscando, de alguma forma, uma articulação entre dois campos de saberes que me acompanham já há bastante tempo na minha trajetória acadêmica, a arte e a psicanálise, mas não sabia exatamente onde poderia se dar esse encontro. Demorei a perceber que essa articulação já estava presente, há algum tempo, tanto em minha trajetória de artista quanto de pesquisadora”, diz Pedron.
Arte e psicanálise
Denise Pedron trabalha com a criação teatral desde 1996, quando integrava o Grupo de Teatro Mayombe, que se dedica à pesquisa sobre o teatro latino-americano sob a direção artística de Sara Rojo, professora da Faculdade de Letras (Fale) da UFMG. Ela conta como foram os primeiros passos no teatro. “Naquele ano, eu cursava Letras na UFMG e trabalhava como professora de português para estrangeiros no Cenex, quando conheci a professora Sara Rojo. Na ocasião, conheci também o trabalho do Mayombe, grupo de teatro hispânico dirigido por ela.”
O interesse de Denise pelos trabalhos do grupo levou-a a trilhar caminhos no teatro, participando de oficinas e trabalhando com grupos. No mestrado, ela pesquisou teatro e, no doutorado, performance. Em 2014, ela iniciou uma formação como analista no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, destinado à transmissão e formação permanente em psicanálise.
“Foi olhando com cuidado para os últimos trabalhos artísticos dos quais participei e percebi que todos foram concebidos a partir da elaboração de vivências traumáticas. Todos continham elementos rituais, carregados de simbologias, e de alguma maneira falavam também de cura.”
A pesquisa analisa três processos cênicos contemporâneos: Domingo (2016), realizado com Cida Falabella, Fonte de cura (2020), de Jack Diniz, e Fala (2021), de Paloma Mackeldy. “Revisando cuidadosamente os processos criativos, percebi que os três trabalhos tinham inicialmente esse ponto em comum, o da elaboração de um trauma individual que aponta para subjetividades coletivas, ao trazer à cena vivências de abandono, racismo e violência sexual, respectivamente”.
Denise explica que, ao analisar os trabalhos realizados nos últimos sete anos, seja como artista, diretora ou orientadora de processos criativos, entendeu a necessidade de refletir sobre os processos que foram construídos com base em vivências traumáticas e sua elaboração por meio da arte. As leituras sobre essa temática se intensificaram, e a pesquisadora passou a também mapear outros trabalhos teatrais que dialogassem com esse universo.
Denise Pedron explica que a interface entre a performance, o teatro e a psicanálise esteve presente em seus trabalhos ao longo da última década. Ela integra o Núcleo de Estudos em Estéticas do Performático e Experiência Comunicacional (Neepec), do Departamento de Comunicação Social da UFMG, que encara a performance como inspiração metodológica e investiga formas de comunicação que privilegiam a articulação entre o corpo, os textos visuais, sonoros e verbais. As questões interseccionais de raça e gênero fazem parte dos interesses da pesquisadora, coordenadora e uma das idealizadoras e do Festival de Teatro Negro da UFMG, promovido pelo Teatro Universitário.
Do fazer teatral ao público
Dor, luto, prazer, medo, amor e resistência são experiências comuns à vida. Cada indivíduo vivencia a singularidade de suas próprias lutas, mas que, de alguma forma, dialogam com o coletivo. Acerca dessa relação, a pesquisadora ressalta a importância da subjetividade para conferir legitimidade à criação, sobretudo na discussão de temas relevantes, como raça, gênero, classe e sexualidade.
“A psicanalista Colette Soler (2021) começa seu livro, De um trauma ao outro, dizendo: ‘Estamos na era dos traumatismos’. Essa afirmação, feita de maneira tão ampliada, reforça a ideia da importância de se pensar a criação artística e também, por consequência, a sociedade em relação ao trauma. Hoje, a subjetividade, a representatividade e o lugar de fala dos sujeitos ganham destaque tanto na criação como na vida.”
Esses aspectos são discutidos na obra pela pesquisadora, que ressalta um desafio necessário para os artistas no seu fazer teatral: falar em seu próprio nome. “Embora existam maneiras plurais de se fazer teatro, essa vinculação entre criação e questões existenciais é bastante perceptível no teatro contemporâneo. O forte caráter conceitual e simbólico, a narração e a elaboração das vivências subjetivas dos artistas em cena estão muito presentes hoje na criação. Não deixar isso de lado é uma escolha do artista, que quer falar em seu próprio nome e defender os ideais que acredita a partir de suas vivências e experiências pessoais.”
Do outro lado está o espectador, que, por sua vez, também pode encontrar experiências transformadoras ao testemunhar as narrativas vivenciadas em cena. “Ao trazer para a instância da representação a experiência traumática e ao conferir sentido a ela, o artista é amparado afetivamente pelo espectador que compartilha desse encontro que se dá por meio da arte. Assim como na psicanálise, o trabalho neste tipo de teatro é um trabalho sobre si ou para dentro de si, tanto para quem propõe o acontecimento como para quem participa dele, na medida em que o que se vivencia permite a produção de um saber sobre si mesmo, para quem tomou a decisão de construí-lo”, explica Pedron.
Divulgação científica acessível
A autora diz ser gratificante ver uma pesquisa de anos sistematizada e publicada de maneira tão cuidadosa. Ao ser questionada sobre como a publicação pode contribuir para a divulgação científica mais acessível, ela responde: “Sem dúvida, é uma forma de aproximar a pesquisa do público em geral”. Apesar de ser o resultado de uma pesquisa acadêmica, Denise afirma que a obra foi escrita em uma linguagem bastante acessível, destinada àqueles que gostam e/ou fazem teatro, e também aos que se interessam pela interface entre teatro e psicanálise, mas que não são especialistas na área.
“Minha ideia é que as pessoas possam ter este livro como uma referência, uma introdução para pensar essa relação entre teatro e trauma, uma relação muito presente no teatro contemporâneo, muito mais presente no fazer artístico do que teorizada. Eu gostaria de contribuir nesse sentido: abrir o campo de reflexão sobre peças contemporâneas que trazem e explicitam a articulação entre teatro e trauma”. Em suma: provocar perguntas que não se esvaem com o fim da leitura.
Livro: Teatro e trauma: três experiências de criação
Autora: Denise Pedron
Editora Javali
R$ 55 / 160 páginas
Mais lidos
Semana
-
Arqueologia da repressão UFMG coordena escavações arqueológicas no antigo DOI-Codi de São Paulo
Grupos da Universidade, da Unicamp e da Unifesp buscam vestígios para recontar o passado do local onde o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado há 50 anos
-
'Nós com a máquina' Nem tecnológico, nem só político: grande desafio da IA é ético
Em encontro do Grupo Tordesilhas, pesquisadores indicam caminhos para que tecnologia possa colaborar com inclusão social e com redução das desigualdades no país e nas universidades
-
Processo seletivo Divulgados novo Documento Norteador e Guia do Candidato do Seriado UFMG
Documentos vão auxiliar na preparação dos candidatos; DN recebeu contribuições de 107 professores, dois terços dos quais vinculados a escolas públicas
-
Escola democrática Expoente da pedagogia crítica tem agenda de atividades na UFMG com especialistas em educação básica e formação de professores
Emérito da Universidade de Wisconsin-Madison, Michael Apple é o titular da cátedra Fundep Magda Soares do Ieat
-
Estudos Culturais UFMG sedia, em 2026, primeira edição da conferência ‘Crossroads in cultural studies’ na América do Sul
Propostas de apresentação de trabalhos podem ser submetidas até 20 de dezembro
Notícias por categoria
Pesquisa e Inovação
-
Setor automotivo Programas prioritários do Mover/Rota 2030 captaram R$ 1,8 bilhão em cinco anos
Mais de 500 empresas e 200 Instituições de Ciência e Tecnologia participaram das ações de desenvolvimento tecnológico, inovação e capacitação profissional no ciclo 2019-2024, revela publicação coordenada pela Fundep
-
Terceira idade Escolaridade pode garantir velhice mais saudável para os brasileiros
Níveis elevados de instrução estão associados à menor prevalência de multimorbidade em pessoas idosas, conclui estudo da Faculdade de Medicina
-
Ensinando além da visão Trabalho de mestrado profissional propõe podcast de matemática para pessoas com deficiência visual
Pesquisa foi feita por Caroline Viana de Assis no âmbito do Promestre, da Faculdade de Educação; ela também escreveu um e-book, com orientações para produções acessíveis
-
Explica UFMG Pesquisas analisam riscos dos microplásticos e formas de diminuir os danos
Partículas de até cinco milímetros já foram encontradas até mesmo no cérebro e na placenta humanos
-
Ciência de ponta Professores da UFMG estão entre os cientistas brasileiros que mais influenciam políticas públicas no mundo
Análise foi feita pela Agência Bori, com dados internacionais da plataforma Overton