Ensaio sobre uma entrevista: livro reflete sobre as memórias precoces de uma vítima da ditadura
Professora Miriam Hermeto, do Departamento História da Fafich, narra o encontro com o colega Eduardo Soares Neves, preso pela repressão quando tinha quatro anos
Por Ewerton Martins Ribeiro
O professor Eduardo Soares Neves Silva, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), foi uma das mais precoces vítimas da ditadura brasileira. Em outubro de 1973, quando tinha apenas quatro anos, ele foi preso junto com a mãe, Maria Madalena Prata Soares, no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de Minas Gerais, local que ficou conhecido por ser um dos principais polos de tortura dos cidadãos que se opunham ao regime militar que vigorou no país de 1964 a 1985.
Em 2020, a professora do Departamento de História da Fafich Miriam Hermeto entrevistou Eduardo Soares Neves sobre as traumáticas lembranças de seus primeiros anos de vida. O objetivo era produzir material para o Memorial dos Direitos Humanos, cujo projeto – previsto para ser erguido no mesmo Dops em que Eduardo ficara preso décadas antes junto da mãe – não chegou a ser concluído.
Com o impasse sobre a construção do memorial, o conteúdo da entrevista, protegido por cláusula de confidencialidade, acabou permanecendo inédito, em prejuízo da documentação histórica brasileira.
Como forma de lançar luz sobre a história vivida e contada por Eduardo Neves naquela conversa, Miriam Hermeto escreveu e está publicando o livro Agradeço pela permanência: A entrevista de Eduardo Soares Neves Silva como experiência, presença, relação humana (Editora Letra e Voz, 2025). Nele, a historiadora publica não a entrevista, que segue embargada, mas uma reflexão que a toma como mote e eixo orbital – em cujas brechas o espírito da conversa acaba por, indiretamente, se revelar.
“Impedida de trabalhar sobre e com a entrevista, decidi narrar como ela me impeliu a lidar com fragmentos de memórias para distribuir sentidos à nossa história recente. Uma experiência que não se resume ao momento em que a entrevista aconteceu. Abrange o que se passou desde então, em cinco anos, com relação àquele momento e ao que dele adveio”, anota a professora em seu pequeno volume, que já está à venda na internet.
Na obra, Miriam mobiliza recursos variados de seu campo de conhecimento para iluminar, por meio da história de vida do colega de docência e do próprio processo de se chegar a essa história político-familiar, algo também mais geral da experiência das demais crianças brasileiras que sofreram nas mãos da repressão que eclodiu na esteira do golpe civil-militar de 1964. No livro, ela faz lembrar, por exemplo, do documentário 15 filhos (Brasil, 1996), que trata das filhas e dos filhos dos militantes da esquerda da geração de Eduardo Neves que foram vítimas de violações de direitos humanos na ditadura.
Ressignificação de fragmentos
O entrevistado, como docente e filósofo, dá seu testemunho “à la Walter Benjamin”, afirma Miriam, na medida em que precisa ressignificar fragmentos de um passado quase imemorial. Escreve Benjamin em O jogo das letras, na citação que lhe é feita na obra: “Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade. Mas é por isso que a compreendemos, e tanto melhor, quanto mais profundamente jaz em nós o esquecido.”
Dois eventos ocorrem em Belo Horizonte na semana que vem em torno da obra e da entrevista que, ausente, por meio dela se insinua. Nesta terça-feira, 21, às 19h30, a autora debaterá o livro com o próprio Eduardo Neves, que atualmente é pró-reitor adjunto de Pós-graduação da UFMG, em mesa-redonda no auditório Carangola da Fafich. Também participa do encontro o historiador Gabriel Amato Bruno de Lima, professor do Centro Pedagógico (CP) e pesquisador do Laboratório de História do Tempo Presente (LHTP) da UFMG.
Para os estudantes de graduação da UFMG, o evento se insere no âmbito das Atividades Acadêmicas Complementares (AAC) do Noturno. Para que os créditos possam ser aproveitados, o aluno deve se inscrever no sistema de Gestão de Eventos (GES) da UFMG. Nele, a mesa-redonda está nomeada como História oral e ditadura militar: experiência, presença e relação humana. Além de tratarem do conteúdo do livro, os participantes vão debater também especificidades metodológicas do seu processo de produção.
Na sexta-feira, 24, às 18h30, ocorrerá o lançamento do livro na Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241, Savassi). Na ocasião, a entrevistadora e o entrevistado encontram-se novamente para seguir conversando sobre o livro e sobre essa entrevista ausente-presente, terminada e em construção – em suma, sobre o “exercício que permite rever pressupostos sobre a memória produzida sobre a ditadura ao longo das últimas décadas no Brasil, tensionando representações e crenças assentadas”, como se anota no material de divulgação do lançamento.
‘Sabia que não devia dormir’
Filho de Maria Madalena Prata Soares e Everaldo Chrispim da Silva, militantes da organização da esquerda católica Ação Popular (AP), Eduardo Neves foi sequestrado junto com a mãe por agentes da repressão num sítio na Região Metropolitana de Belo Horizonte justamente no momento em que eles, já vivendo na clandestinidade, aguardavam a oportunidade de partir para o exílio. Era o início dos anos 1970, tempo do maior recrudescimento da repressão e da violência da ditadura; já não havia condições de se manter em segurança no território brasileiro. Lembrando da entrevista com o professor, Miriam anota em seu volume:
“Dudu sabia que não devia dormir. Havia sempre alguém vigiando e o soldado poderia fazer algo ruim com ele e sua mãe. Queria seu brinquedo, que tiraram. Ficou muito constrangido porque teve que ficar pelado na frente de outras pessoas. Tinha fome e ganhou, de alguém, uma maçã – ou um bolo? – que levou para dividir com a mãe. Ela cuidava dele e tentava brincar de alguma forma. Foi levado a uma janela e ficou dependurado, ou quase, enquanto gritavam com sua mãe. Queriam saber quem eram os tios e tias que ele conhecia. Queriam saber do paradeiro de seu pai. Mas ele não estava ali. Dudu e Madalena estavam sós naquele lugar, ele não entendia por quê.”
O poder imprevisível da história oral
Miriam Hermeto também é autora de Entrevistas imprevistas: surpresa e criatividade em história oral (Letra e Voz, 2022), que ela organizou em parceria com Ricardo Santhiago. Há algumas semanas, a versão em inglês da obra – The unexpected in oral history: Case studies of surprising interviews (Palgrave Macmillan, 2023) – foi eleita pela International Oral History Association (IOHA) como o melhor livro de história oral do biênio em todo o mundo. O livro também pode ser encontrado à venda na internet.
Reunindo diferentes experiências de pesquisa, Entrevistas imprevistas mostra como situações de surpresa, das férteis às desconcertantes, se tornam, no âmbito da história oral, ocasiões para a reinvenção metodológica e epistemológica. Aqui, em jogo, está a discussão sobre o lugar do improviso, da vulnerabilidade e da coautoria na construção do conhecimento histórico. O prêmio foi atribuído durante a 23ª edição do Congresso da International Oral History Association (IOHA), realizado em Cracóvia, na Polônia, em meados de setembro.
“O reconhecimento internacional confirma a relevância de uma obra que explora o imprevisto como dimensão fundamental do trabalho de campo envolvendo entrevistas”, anota a editora em comunicado distribuído por ocasião do anúncio do prêmio. “Inspirado no ensaio fundamental de Janaina Amado sobre ‘o grande mentiroso’, o livro questiona a ideia de entrevista como procedimento estável e controlado, propondo em seu lugar uma reflexão sobre a criatividade, a imaginação e a abertura ao inesperado que atravessam a escuta e a escrita em história oral.”
A autora
Professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), Miriam Hermeto Sá Motta fez toda a sua formação superior na UFMG: licenciatura (1994), bacharelado (1997) e doutorado (2010) em História, além de mestrado em Educação, em 2002. Ela coordena o Laboratório de História do Tempo Presente (LHTP) da Fafich e é pesquisadora do Laboratório de Ensino de História da mesma unidade. Miriam também integra a Associação Brasileira de História Oral (ABHO) e a Rede Brasileira de História Pública (RBHP).
Como pesquisadora, Miriam atua na fronteira entre duas áreas de pesquisa: a da História do Brasil contemporâneo, com ênfase no período da ditadura civil-militar (1964-1985) e no período de transição democrática que o sucedeu, e a de Ensino de História, em que investe em abordagens que transitam entre a história cultural do político, a história pública e a história da memória. No âmbito desse segundo campo, ela publicou a obra História pública e ensino de história (Letra e Voz, 2021), junto com Rodrigo de Almeida Ferreira, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Nas minibiografias que apresenta em seus livros, a professora não se furta anotar que “também é mãe, cantora diletante e escritora – dimensões que são partes integrantes de sua escuta e escrita”. Sob essa perspectiva, Miriam ministrou, nos últimos anos, uma série de aulas-show sobre a ditadura. Nelas, a historiadora-cantora mobilizava canções populares para potencializar a interpretação historiográfica desse trágico capítulo da vida brasileira. No âmbito dessa interdisciplinaridade, ela é autora do livro Canção popular brasileira e ensino de História: Palavras, sons e tantos sentidos (Autêntica Editora, 2012).
Livro: Agradeço pela permanência: A entrevista de Eduardo Soares Neves Silva como experiência, presença, relação humana
Autora: Miriam Hermeto
Editora Letra e Voz
R$ 48 / 116 páginas
Livro: Entrevistas imprevistas: surpresa e criatividade em história oral
Organizadores: Miriam Hermeto e Ricardo Santhiago
Editora Letra e Voz
R$ 56 / 352 páginas
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