Livro de Andityas Matos aborda origens, tendências e antagonismos da teologia política
Para o professor da Faculdade de Direito, as novas correntes nesse campo, de potencial democrático e revolucionário, devem disputar sentidos com as antigas, soberanas e opressoras
Como é possível que uma figura como Jesus Cristo, que prega o amor universal, a fraternidade e o perdão, seja apropriada de forma eficaz por políticos de extrema direita como Trump e Bolsonaro, que baseiam seus projetos de poder no ódio, no individualismo possessivo e na idolatria ao dinheiro? A questão é posta no texto de apresentação do livro Decrypting political theology: genealogy, tendencies, antagonisms, do professor Andityas Matos, da Faculdade de Direito da UFMG, que acaba de ser lançado pela editora Bloomsbury de Londres. E logo se indica um caminho de resposta: “Uma das chaves para compreender esse fenômeno está na teologia política, que investiga criticamente as relações entre fé e poder.”
Em sua apresentação para o volume, que sai por ora apenas na versão em inglês, Andityas lembra o jurista, filósofo e teórico político alemão Carl Schmitt, para quem “todos os conceitos significativos da moderna teoria do Estado são conceitos teológicos secularizados”. Segundo o filósofo e professor da UFMG, apesar de negado e ocultado pelo pensamento que se autointitula “progressista”, o diagnóstico tem se mostrado verdadeiro no Brasil e nos Estados Unidos, por exemplo. Ele acrescenta que, nesses países, “a teologia política parece realizar sua vocação autoritária e, assumindo inclusive dimensões econômicas, se transforma em cristofascismo neoliberal”.
Ainda assim, prossegue o autor, a teologia política pode assumir modos radicalmente democráticos, “na medida em que se aproxima da noção de an-arquia, intuída por filósofos como Nietzsche e Agamben, assumindo assim a falta de fundamento fixo e uno como condição para o pensar e a prática de novas teologias políticas de inspiração feminista, negra e decolonial”. Essas teologias, defende Andityas, se orientam não mais por noções como as de soberania, poder e autoridade, mas por outras como contingência, potência e diferença, abrindo, segundo ele, um novo campo de disputas.
Andityas Matos, que leciona Filosofia do Direito e disciplinas afins, afirma no livro que é cada vez mais evidente, nos Estados Unidos e no Brasil, o confronto entre aqueles que usam a religião para justificar a desigualdade, a injustiça e o autoritarismo e os que, percebendo “as possibilidades libertárias que surgem de um cristianismo reinterpretado em favor dos vencidos, exploram os potenciais emancipatórios da fé, negando ao capitalismo o domínio total a que aspira, a exemplo do que teria feito o Cristo ao expulsar os vendilhões do templo”.
História e conceito
Decrypting political theology defende a retomada dos estudos teológico-políticos com base na necessidade de superar a redução da política a uma disciplina meramente técnica. Andityas Matos discute as potencialidades de uma leitura crítico-filosófica que considere os vínculos problemáticos entre crença, fé e poder, fenômeno central e determinante da política recente, inclusive a brasileira.
No primeiro dos três capítulos do volume, o autor, para apresentar brevemente o conceito de teologia política em seus diversos aspectos e em sua genealogia histórica, da Idade Média à Contemporaneidade, se vale da proposta teórica de Carl Schmitt apresentada em Teologia política: quatro capítulos sobre a teoria da soberania, publicado em 1922. Nesse texto, o teórico alemão definiu a teologia política como campo de estudos adequado para filósofos e juristas preocupados com o fenômeno da legitimação do poder a partir da Modernidade – e fez a tal afirmação sobre todos os principais conceitos da teoria do Estado serem conceitos teológicos secularizados. Ainda na primeira parte de seu livro, Andityas empreende uma diferenciação conceitual entre teologia política e construtos similares como teocracia, soberania dual e religião política, que se relaciona a cenários totalitários – “o que não é necessariamente o caso da teologia política, ao contrário do que muitos pensam”.
Doutor em Direito e Justiça pela UFMG e em Filosofia pela Universidade de Coimbra (Portugal), Andityas Matos observa que a teologia política schmittiana dominou amplamente os estudos nesse campo no último século. Ainda que refinada, a teoria dá suporte a uma teologia política autoritária e conservadora que se concentra na noção de soberania. Na época, essa orientação foi objeto de críticas, sobretudo de Walter Benjamin e Jacob Taubes, mas só bem mais tarde foi possível construir sistemas teológico-políticos alternativos. Isso se deveu ao encontro entre novas propostas teóricas – como as de Derrida, Foucault e Deleuze –, movimentos sociais e lutas identitárias. No segundo capítulo, o autor discute as propostas de reconfiguração e superação da teologia política de Carl Schmitt.
Hoje, escreve Andityas Matos, está aberto espaço para “visões teológico-políticas democráticas e libertárias capazes de fazer face à visão tradicional centrada nas ideias de soberania, onipotência, obediência, patriarcalismo e hierarquia”. As novas teologias políticas, ao contrário, segundo ele, se orientam por “temas como a morte de Deus, o evento do comum, a precariedade e o cuidado, a abertura interpretativa das Escrituras e a valorização dos mikrói, ou seja, dos oprimidos, compondo um rico pano de fundo que permite repensar toda a tradição político-jurídica moderna”.
Arena de decisões fundamentais
No terceiro e último capítulo, Andityas Matos aprofunda os temas tratados anteriormente e dedica-se a mostrar o terreno teológico-político como “um campo de disputa social importante, uma das principais arenas em que decisões políticas fundamentais são debatidas e efetivadas”. Ele discute como o encobrimento, ou recalcamento, da teologia política suscitou “o surgimento de teologias econômicas e jurídicas extremamente autoritárias que, dizendo-se não políticas ou neutras, acabaram por gerar intensos efeitos políticos de dominação”.
O autor oferece como exemplo a transformação do neoliberalismo em “uma espécie de metanarrativa social quase religiosa, em que temas como o individualismo, a competitividade desenfreada e subjetivação pela culpa/dívida criam uma sociedade atomizada e acrítica”. Isso, segundo ele, se reflete no Brasil, entre outros casos, na captura da política por visões religiosas sectárias, violentas e fundamentalistas. No cenário internacional, escreve o professor da UFMG, os direitos humanos são instrumentalizados e sacralizados como justificativas para intervenções “humanitárias” e “guerras justas”, alimentando um discurso que separa os povos entre “nós” e “eles”, “Ocidente” e “Oriente”, “civilizados” e “bárbaros”. Essas práticas discursivas expressam uma teologia política que se mostra como um “campo produtivo de novos massacres e fundamentalismos religiosos de todo tipo”.
Como ressalta Andityas Matos, ainda na apresentação de seu livro, é urgente resgatar as potencialidades libertárias, democráticas e revolucionárias das novas correntes teológico-políticas “para lutar contra as teologias políticas soberanas e opressoras no terreno adequado, qual seja, o das narrativas sociais e da disputa de sentidos, algo que não pode ser feito unicamente por discursos tidos como racionais, científicos ou ‘neutros’”. O autor complementa: “Há uma dimensão de transcendência na política que não foi nem será superada pela Modernidade, devendo ser disputada, criticada e reconstruída tendo em vista compromissos politicamente democráticos, filosoficamente libertários e economicamente justos.”
Em conversa com o Portal UFMG, o professor da Faculdade de Direito afirma que as teologias políticas democrático-radicais podem contribuir com esses objetivos “na medida em que se reconheça que a religião e a fé em geral não são dimensões apolíticas, mas, ao contrário, terrenos indispensáveis para a construção de sentido social, algo que a extrema direita parece ter compreendido muito bem, ao contrário do chamado campo progressista, que até hoje insiste em uma visão técnica, ‘racional’ e meramente material das lutas políticas, relegando a religiosidade à seara da irracionalidade, com o que perde cada vez mais espaço na disputa pelo poder, em especial no Brasil”.
Livro: Decrypting political theology: genealogy, tendencies, antagonisms
Autor: Andityas Matos
Editora: Bloomsbury
240 páginas | Impresso e e-book
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