REVISTA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Ano 10 - Número 19 - maio de 2012

Aprendendo a jogar

Produção de games ganha espaço na academia e tenta consolidar uma linguagem própria

ITAMAR RIGUEIRA JR.

www.sxc.hu
Aprendendo a jogar

No mundo, e também no Brasil, os conceitos vinculados aos jogos digitais se disseminam e se aplicam a diversas áreas, mas o mercado nacional ainda precisa se fortalecer para que as empresas cresçam e abriguem profissionais que têm sido formados por número cada vez maior de cursos em universidades dedicados aos games. Há controvérsias sobre aspectos como a integração de academia e mercado, mas os criadores de jogos feitos para computadores e celulares e outras plataformas já aprendem a trabalhar segundo uma lógica específica – que conjuga narratividade e interatividade –, diferente daquela do cinema ou da literatura.

Na UFMG, a vertente artística dos jogos digitais ganhou espaço em 2009, com a abertura do curso Cinema de Animação e Artes Digitais (Caad), da Escola de Belas-Artes. A iniciativa vale-se de parceria com o Departamento de Ciência da Computação, que se responsabiliza pela área de programação e ajuda a elaborar um programa de formação complementar. Marcado pela transdisciplinaridade, o curso da EBA parte do pressuposto de que a animação vai bem além dos desenhos animados tradicionais e deve ser pensada em função do seu potencial de utilização em instalações de arte interativa. A técnica do stop motion, que anima objetos, tem forte relação com a computação, como mostra de forma exemplar o filme Avatar. “Um dos caminhos é a arte computacional, e a computação permite animação“, lembra o professor Carlos Falci, subcoordenador do Caad.

Ainda segundo Falci, o curso não investe na ideia do progresso (da animação para o digital). O espírito é de continuidade, já que as artes digitais bebem na animação. E a proposta é formar artistas, não transformar o aluno em mais um animador. O professor afirma que o Caad é o primeiro curso que busca explicitamente eliminar a divisão entre animação, cinema e arte digital. Ele lembra que cinema e arte digital têm em comum aspectos como a trucagem e as imagens fantásticas. “Outra característica que os une é que as equipes de produção são compostas de dezenas de pessoas, ligadas a vídeo, web, marcenaria etc.”

Depois de passarem pela base da animação e dos jogos de tabuleiros, entre diversas outras disciplinas, os alunos do curso da EBA chegam às aulas de Games 1 e Games 2. A primeira envolve a história do jogo digital e os aspectos de sua concepção: definição do público-alvo, da história por trás, dos personagens e elementos de cenário, áudio e vídeo, desafios e condições de vitória e perda, além dos modelos de interação com o usuário. As aulas de Games 2 ensinam o desenvolvimento do jogo – programação básica, modelagem de personagens e elementos de cenário, com aplicação do que se produziu nas disciplinas de animação.

Tudo isso capacita para a criação de jogos dos mais diversos gêneros: ação, aventura, FPS (disputas com tiros), casual (como paciência), simulação (para aplicações como treinamento de voo), RPG (desempenho de papéis), corrida, esporte, plataforma, advergames (publicidade) e RTS (estratégia em tempo real). De acordo com a professora Rosilane Mota, do curso de Cinema de Animação e Artes Digitais da EBA, em quase todos esses gêneros a novidade mais significativa é o crescente nível de interação. Consoles de última geração trabalham sobre a simulação de movimentos reais, e não exigem coordenação motora fina tão apurada como os (já quase ultrapassados) joysticks. Outra linha de evolução tem levado à miniaturização dos equipamentos.

Heróis desbravadores

Em Minas Gerais, ainda segundo Rosilane, o mercado experimentou aumento significativo a partir de 2006, e uma das motivações foi a abertura de empresas pela primeira turma de graduados da PUC Minas, uma das pioneiras no Brasil, junto com instituições como a PUC-Rio e a Universidade Federal Fluminense (UFF). Os especialistas têm sido recrutados em Belo Horizonte para missões ligadas a aulas via web, engenharia (simulação), educação musical (o ensino passa a ser obrigatório nas escolas básicas), além da produção de módulos para empresas estrangeiras.

Muitas empresas não querem apenas produzir conteúdo para o exterior, mas enfrentam um problema, na visão do pesquisador Roger Tavares. Ele lamenta o fato de a maioria das pessoas no Brasil achar que tudo que vem de fora é melhor e se recusa a experimentar o que é produzido no país. “Os empresários que fazem games no Brasil são heróis que desbravam um mercado já dominado por empresas poderosas”, ele afirma. Tavares critica ainda o diálogo incipiente da indústria com a academia. “Ambos se fecham em nichos ilusórios. Os estudantes imaginam que vão aprender suas profissões no mercado de trabalho, e se concentram na obtenção de um diploma. As empresas, por sua vez, não têm condições de ensinar futuros profissionais no seu dia a dia e acabam optando por outsourcing na Índia e no Vietnã”, diz o pesquisador, pós-doutor pela PUC-SP na área de games, mídia e ciências cognitivas.

Em sua opinião, um dos desafios da produção de jogos é a necessidade de compreendê-los como mídia diferente do cinema, da televisão e literatura. Ainda é muito difícil encontrar um roteirista com a habilidade de criar puzzles e evolução de personagens. “Os roteiristas vêm de outras indústrias e precisam de tempo e condições para aprender novos conceitos”, argumenta Tavares. O roteirista trabalha em estreita colaboração com o game designer, que assume as questões relacionadas à mecânica do jogo e é o responsável pelas principais decisões do projeto. Outro profissional que ainda está se adaptando é o músico que se aventura na criação de áudio para jogos digitais. Roger Tavares explica que esses artistas devem pensar de forma não linear: “A música e os efeitos precisam dialogar com a jogabilidade; são inseridos muitas vezes como pano de fundo, quando devem ser peça importante do jogo”, ele sustenta.

Recursos gráficos

A necessidade de customização dos jogos, ou seja, de maior vinculação dos acontecimentos às ações do jogador, é um dos desafios apontados por Rosilane Mota, da UFMG. Outra preocupação da professora está ligada à área do 3D: “A evolução dos recursos gráficos é muito grande, e esse movimento é acompanhado pelos equipamentos. Mas como o 3D exige muita memória, processadores rápidos e potentes, os jogos em três dimensões ainda não são acessíveis à maioria das pessoas.” Essa deficiência vem sendo compensada pelo investimento na portabilidade dos games, que devem ser produzidos para várias plataformas.

A relevância do acesso ampliado aos jogos digitais é demonstrada pelas descobertas recentes relacionadas a seu papel como “espaços de aprendizagem que potencializam o desenvolvimento de habilidades cognitivas”, nas palavras da professora Lynn Alves, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Segundo ela, como envolve uma situação-problema, o jogo é fundamental para proporcionar a construção de novos conceitos. Os jogadores são mobilizados a buscar estratégias de solução, “seja através da imitação, tentativa e erro ou assimilando e acomodando processos complexos que levam a novos conhecimentos na perspectiva de Piaget”.

Pedagoga, doutora em Educação e Comunicação pela própria UFBA, Lynn Alves revela que tem se surpreendido com o crescimento de pesquisas envolvendo as possibilidades educativas dos jogos digitais, sobretudo porque a educação tem certa dificuldade de interagir com as diferentes mídias. “Esse crescimento sinaliza a necessidade de escutar o universo dos nossos alunos, estabelecendo uma parceria entre a escola e a cultura digital.”

Mas ainda há muito o que fazer para que os jogos sejam utilizados de forma eficiente como ferramentas educativas. Na área de alfabetização e letramento, pesquisas da UFMG estão concentradas no projeto Aladim (Alfabetização e Letramento em Ambientes Digitais Interativos Multimodais), que envolve professores das faculdades de Letras (Fale) e Educação (FaE), da Escola de Belas-Artes (EBA) e da área de matemática computacional. O objetivo das pesquisas é, por meio de análises de opções existentes no mercado e de elaboração e testes com novos jogos, contribuir para o processo de letramento, tanto impresso como digital.

Segundo a coordenadora do Aladim, professora Carla Coscarelli, da Fale, há pouco material interessante disponível. “Os jogos educativos que encontramos na internet, que lidam com alfabetização, dão pouco feedback, não trabalham com o estímulo baseado em conquista e recompensa, e muitos fazem simples transposição do que já foi pensado para o meio impresso”, ela explica.

Diversão e aprendizagem

O grupo criou uma versão do famoso Pacman, em que a criança enfrenta um labirinto onde deve encontrar sílabas e letras, e trabalha também numa versão acessível de uma mesa interativa, multitoque, utilizando projetor comum de data show e uma superfície de vidro lixado. Uma das atividades que vêm sendo elaboradas envolve os nomes dos frutos do Brasil e outra tenta associar ludicamente as sílabas aos seus respectivos sons.

“Descobrimos uma das razões pelas quais a oferta do mercado deixa tanto a desejar: para criar um jogo digital é preciso contar com equipe que inclua programador, designer, educadores, entre vários outros”, diz Carla Coscarelli, que tem formação em estudos linguísticos e pós-doutorado na área de ciências cognitivas, com foco na leitura. Além disso, ressalta ela, devem-se aplicar princípios como o dos desafios crescentes aliados à carga educativa. “Boa parte de nosso esforço é dedicada a encontrar o meio termo, porque a atividade tem que provocar a aprendizagem sem deixar de ser um jogo divertido.”

Tanto esforço tem surtido efeitos. Os primeiros testes com os jogos de alfabetização (a parte que envolve uma noção mais ampla do letramento será trabalhada numa segunda etapa) indicam que as crianças têm mais facilidade de aprender a partir da palavra, e não da letra ou da sílaba, como se tende a acreditar. E que o reconhecimento fica mais simples quando a palavra em questão é familiar ao jogador, ainda que a composição silábica fuja do padrão mais básico. “Temos tido boas surpresas ao trabalhar com os jogos, que podem ser ótima fonte de informação sobre o processo de aquisição da língua escrita”, conta a pesquisadora.

Também envolvido com as pesquisas do projeto Aladim, o professor Chico Marinho, da EBA, ressalta que os jogos aplicados à educação vão ao encontro da tese de que o ensino deve ser adequado ao aluno, além de conduzido de forma interessante. Outro argumento é o de que, se as tecnologias trazem transformações e novas formas de entender o mundo, nada mais natural que novos conhecimentos mudem a forma de educar. “Os jogos permitem a brincadeira coletiva e a interação com o material didático, que é moldável às necessidades dos alunos a cada momento”, opina Marinho.

Acostumado à reflexão sobre aplicações da arte digital em campos diversos, Marinho lembra que a articulação das ciências exatas com as artes é o grande mérito do curso da UFMG, que tem um projeto pedagógico novo e, por isso, naturalmente enfrenta alguma resistência. Ele ressalta que, no contexto da inteligência computacional, não há mais sentido na cisão entre ciências e humanidades. “Formalizar novas linguagens computacionais é revolucionário na escola de arte, e a arte é tradicionalmente o patinho feio na comparação com as exatas. Mas hoje está claro que a criatividade é a base de toda construção de conhecimento, e ela não tem um lócus específico, antecede todas as coisas. A hora é de construir pontes”, diz Marinho.

Fonte de prazer

Os jogos permeiam a vida humana: tratam de força, sorte e azar, inteligência, disputa com um oponente, sobrevivência. Para as crianças, jogar é experimentar a vida na fantasia – rabiscando, fazendo de conta, olhando para o mundo de ângulos diferentes, colocando-se no lugar do outro, eliminando preconceitos. Para os adolescentes, jogar é fundamental, na medida em que simulam, testam como seria no mundo de verdade. “Na verdade, os jovens jogam um pouco mesmo na vida real, e a ideia de que o jogo tira da realidade é balela”, analisa o professor Carlos Falci, da EBA.

Responsável no curso da UFMG pelas disciplinas Arte e Mídia e Panorama da Arte Digital, Falci aborda o tema pela face da estética, ciência que estuda o modo como se percebem os objetos. Um dos objetivos é estudar a relação do homem com a tecnologia e como esta pode interferir na percepção do real. Para ele, não se pode querer isolar os games do mundo, já que eles se baseiam nos comportamentos do mundo real.
Antes de se configurar como disputa – para ganhar ou perder –, o jogo é uma fonte de prazer. “Essa é a lógica, por exemplo, do aprendizado de música (ritmos, tonalidades) por meio do remix numa mesa de objetos, que são associados a elementos musicais. Além da matemática que rege a música, aplica-se aí a lógica do prazer, ignorada pelo ensino tradicional”, ele explica.

Segundo Carlos Falci, que desenvolve pesquisa sobre produção de memórias com uso de mídias locativas e ambientes programáveis, os jogos abrem para a criatividade e para o raciocínio lógico, envolvendo problemas filosóficos como a dedução. Ele lembra que os games digitais possibilitam viagens muito diferentes a lugares distantes no tempo e no espaço, como a Roma dos imperadores e a África atual – este é o caso de um jogo da FAO (agência das Nações Unidas para a agricultura e a alimentação) que desafia os participantes a fazer chegar comida a populações famintas. E estimulam o interesse pela administração da coletividade. Simcity, criado com ajuda de arquitetos, exige que o jogador cuide de uma cidade respeitando regras como as do urbanismo.

Entrevista - Esteban Clua - “Indústria não acompanha ritmo da formação”

A formação na área de jogos digitais no Brasil está à frente do desenvolvimento da indústria, e o país tem se beneficiado da valorização das iniciativas independentes na produção de jogos casuais, segundo Esteban Clua, doutor em computação gráfica pela PUC-Rio e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ele diz que prefere ver pelo aspecto positivo a saída de talentos para o exterior: “Eles trazem projetos para o Brasil”.

Como anda a formação, dentro e fora das universidades, na área de games?

O Brasil é um país apaixonado por videogames e por novas tecnologias. Isso criou aqui ambiente propício para enorme proliferação de cursos dos mais diversos tipos na área de videogames, sendo muitos deles em instituições de renome e tradição em pesquisa. Podemos dizer que, no que se refere a cursos e formação, o Brasil se coloca entre os países mais avançados. Infelizmente não temos uma indústria que acompanhe esse ritmo. Entretanto, é interessante notar que a formação na área de games tem permitido que muitas outras áreas afins saiam beneficiadas, em função do elevado número de pessoas que são formadas: simulação, realidade virtual, TV digital, animação etc.

Como vê o mercado na área de jogos, incluindo a saída de brasileiros para trabalhar em outros países?

O grande problema no Brasil é a falta de empresas grandes e com orçamentos para superproduções. São dezenas de empresas, mas na maioria pequenas, start-ups e incubadas. Mesmo assim, o mercado mundial vem valorizando muito a produção de jogos casuais, muitas vezes produzidos por desenvolvedores independentes. Nesse sentido, temos um panorama muito interessante para o Brasil, pois indies são o que não falta por aqui. E quanto à evasão de profissionais, sim, existe. Por um lado é bom, pois muitos voltam e trazem seu know-how e contatos para cá. Acredito que há um sentimento de patriotismo e constantemente somos procurados por pessoas que estão no exterior, mas querem ajudar a trazer projetos e recursos para o Brasil.

Em que áreas do desenvolvimento de games o Brasil está bem servido de profissionais e técnicas, e quais são aquelas em que é preciso crescer?

O Brasil tem muitos grupos trabalhando com os chamados advergames (jogos para fins publicitários) e jogos sérios (para fins de educação, simulação, treinamento). O processo de gameficação – o uso do conceito de games para diversas áreas – vem ganhando bastante espaço no mundo todo e não é diferente no Brasil. Temos empresas e equipes que se equiparam ao primeiro mundo. Também temos boa produção de jogos mobiles, especialmente porque podem ser feitos por equipes pequenas e a baixo custo. Precisamos crescer na produção de jogos para os grandes consoles.

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