REVISTA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Ano 10 - Número 19 - maio de 2012

Universo paralelo

Cinco professores da UFMG enriquecem sua formação acadêmica entre a bancada e os acordes

GABRIELLA PRAÇA

A carreira acadêmica geralmente é vista como um percurso que exige dedicação e disciplina. Atividades de docência e pesquisa, por si só, já tomam boa parte do tempo e energia dos professores universitários. No entanto, mesmo com uma rotina austera de aulas, estudos, congressos, experimentos e publicações, vários deles encontram brechas na agenda para trabalhar a música como ofício paralelo.

Entre uma aula e outra, um projeto de pesquisa e outro, surgem uma letra, um acorde, uma canção. E, assim, deixam-se levar esses professores músicos, vivendo ao ritmo acelerado do mundo contemporâneo, mas sem nunca deixar de lado a emoção. Alguns encaram a música como hobby, outros ousam dedicar-lhe o status de segunda profissão. Em comum, todos têm o entendimento de que as distintas ocupações se permeiam – a experiência com os acordes faz deles professores melhores.

Arquivo pessoal
Robson Santos em show em Ouro Preto: inspiração espontânea
Robson Santos em show em Ouro Preto: inspiração espontânea

Subo nesses palcos

“Posso começar a cantar?” A pergunta era feita pela pequena Júnia Serra-Negra toda vez que sua mãe recebia visitas em casa. Em cima de uma cadeira que fazia as vezes de palco, a cantora-mirim se apressava em exibir seus dotes vocais aos recém-chegados, a fim de receber os elogios. Nascida em uma família de apreciadores da música – seus pais se conheceram em um curso de canto lírico –, desde cedo Júnia foi incentivada a desenvolver seu talento. “Aos cinco anos fui estudar piano na então Fundação Mineira de Arte [Fuma, posteriormente incorporada à Universidade Estadual de Minas Gerais]”, relembra.

O tempo foi passando e Júnia nunca se afastou da música. Anos mais tarde, em idade de prestar vestibular, chegou a cogitar fazer carreira na área. Porém, os pais assustaram-se com a possibilidade. “Eles achavam muito bonitinho, mas para ser hobby, não profissão”, explica Júnia, hoje professora da Faculdade de Odontologia da UFMG. A saída conciliatória foi abraçar simultaneamente os dois ofícios. “Comprei meu primeiro piano aos vinte e poucos anos, com o primeiro salário que recebi trabalhando como dentista”, revela.

Quando seu pai, Emmanuel Serra-Negra, faleceu, em 1992, Júnia compôs uma canção para expressar sua tristeza. Nunca mais parou. O primeiro CD, Acústica luz, foi lançado em 2001, só com composições próprias. O estímulo do marido, Marco Antonio Monti, “parceiro de cama, mesa e música”, levou à produção do segundo álbum, Quarto caminho. A proposta era apropriar-se de ritmos brasileiros, como o chorinho, para conscientizar as pessoas em relação aos cuidados com a natureza. Para o terceiro CD, que deve vir ainda mais abrasileirado, já há mais de 100 composições guardadas.

Em 2008, Júnia foi vencedora de um concurso internacional de música. Sua canção Amor incondicional foi selecionada entre seis mil obras do mundo todo para compor a trilha sonora do filme inglês The experimental witch, adaptação do livro A bruxa de Portobello, de Paulo Coelho. A premiação impulsionou sua carreira musical. “Hoje minha música toca em rádios de várias partes do mundo”, comemora.

Odontopediatra, Júnia acredita que sua relação com a arte lhe confere maior sensibilidade para compreender o universo dos pacientes, tanto no atendimento quanto na pesquisa acadêmica. “Por que uma criança já grande chupa o dedo? Por que algumas rangem os dentes? Sou docente de uma linha de pesquisa que investiga hábitos orais, que têm tudo a ver com emoções”, salienta. Além disso, diz ela, “ser professora é como estar num palco”. Com direito a técnicas de aquecimento vocal e estratégias de motivação do público.

Talento para ouvir o não dito

Em que medida uma história de vida pode ser considerada obra do acaso? Na trajetória do professor João Gabriel Marques Fonseca, da Faculdade de Medicina e da Escola de Música da UFMG, circunstâncias históricas desfavoráveis determinaram o desvio do caminho que deveria trilhar. Filho de um engenheiro que mantinha especial apreço pela música, desde cedo foi estimulado a seguir carreira na área. Aos 17 anos de idade, surgiu a oportunidade de estudar no Conservatório de Varsóvia, na Polônia.

Mas o ano era 1968, auge da ditadura militar, e naquela época visitar um país socialista era visto com desconfiança. A impossibilidade de concretizar seus planos obrigou-o a buscar outras possibilidades e, assim, surgiu a medicina em sua vida, “um acidente de percurso”, nas palavras dele próprio.

Mas a carreira médica não o impediu de dar prosseguimento à sua formação musical. Por mais de uma década, entre o final dos anos 70 e o início dos 90, foi aluno do professor, compositor e musicólogo de origem alemã Hans-Joachim Koellreutter, considerado por muitos o maior educador de músicos de sua geração. Com ele, estudou contraponto, harmonia, linguagem musical e sociologia da música. Anos mais tarde, em 1984, já professor da Faculdade de Medicina da UFMG, João Gabriel se tornaria também docente da Escola de Música, onde daria continuidade ao trabalho desenvolvido por Koellreutter como professor convidado da instituição.

Hoje ele divide sua carga horária entre os dois cursos. Além de lecionar história do pensamento musical, neurofisiologia da música e disciplinas de pós-graduação da Escola de Música da UFMG, João Gabriel atua no Hospital das Clínicas, onde ministra curso prático de imersão na clínica médica. Para ele, não há como impedir que uma atividade contagie a outra. “A linguagem musical é altamente sofisticada, capaz de expressar manifestações humanas para as quais a palavra não basta. E assim também é a doença, expressão de alguma espécie de desequilíbrio que não pode ser verbalmente traduzido”, compara. Nas duas frentes, João Gabriel tem ciência de que tenta o improvável: ouvir aquilo de que não se pode falar.

Arquivo pessoal
João Gabriel ao piano: medicina é “acidente de percurso”
João Gabriel ao piano: medicina é “acidente de percurso”

Rigor e criatividade

“Meu bem, meu bem / O mundo é uma besteira / Legos de fronteiras.” Os versos são de uma bossa composta pelo fisiologista Robson Santos, após assistir a um evento no qual o conferencista relacionava o progresso das nações ao número de peças do brinquedo Lego que possuía – uma quantidade maior possibilitaria construções mais complexas. Para ele, a inspiração vem assim: espontaneamente. “Não me sento para compor porque acho isso a maior caretice, coisa de músico burocrata”, revela.

Mesmo que quisesse, a rotina corrida não lhe permitiria dedicar-se à música em horário marcado. Além de lecionar no Instituto de Ciências Biológicas da UFMG, ele coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Nanobiofarmacêutica, no qual são desenvolvidos produtos na área de fisiologia cardiovascular. Entre um experimento e outro, as canções aparecem. Aliás, para o pesquisador, “a ciência é uma grande composição”. Ele ressalta que a atividade musical desenvolve a criatividade – atributo necessário, inclusive, para resolver problemas científicos. Por outro lado, o rigor da ciência também é incorporado à sua produção musical. “Tenho autocrítica suficiente para reconhecer minhas limitações como compositor e só entro em estúdio com profissionais”, salienta. Uma espécie de produção metódica, que preza, sobretudo, pela qualidade.

Músicos respeitados da MPB, como Eduardo Gudin, Vicente Barreto e Filó Machado, foram seus amigos de juventude na época em que frequentava os círculos da boemia paulistana. Com alguns deles mantém contato até hoje, fazendo parcerias em arranjos, shows e gravações. No estúdio ou no palco, a voz e o violão de Robson Santos estão sempre muito bem acompanhados.

De pais para filhos

No final dos anos 70, o pavilhão central de aulas do Instituto de Ciências Exatas (Icex) reunia alunos de distintos cursos da UFMG. Uma vez por ano, acontecia o festival Woodicex – mistura de Woodstock com Icex –, no qual bandas de estudantes apresentavam ao vivo suas próprias composições. Foi nesse movimentado cenário cultural que o físico Marcos Pimenta e o químico Eduardo Mortimer se conheceram, ambos ainda alunos de graduação. Junto com os estudantes Pedro Licínio e Wagner Rodrigues, hoje também professores do Departamento de Física, os dois montaram O Grande Ah!, banda que movimentaria o circuito musical de Belo Horizonte nos anos seguintes.

Em sua origem, o grupo desenvolvia um ritmo similar ao das composições do Clube da Esquina. No entanto, logo surgiram músicas de levada mais rock, influenciadas pelas bandas brasileiras dos anos 1980. Na primeira metade daquela década, O Grande Ah! ampliou sua formação e fez muito sucesso em Belo Horizonte, compondo intensamente e apresentando-se para plateias numerosas, especialmente no auditório do antigo DCE Cultural, hoje Cine Belas-Artes.

Mas, a partir de 1985, alguns integrantes da banda se mudaram para a Europa – inclusive Marcos Pimenta, que tinha decidido estudar na França. “Fiz uma pausa de dois anos nos estudos, após concluir o curso de mestrado, e essa foi a época em que mais me dediquei à música”, relembra. “Até que, em certo momento, concluí que eu precisava de uma profissão, e resolvi investir no doutorado.” A debandada desarticulou o grupo, que só retomaria suas atividades em 1987, já com outra formação.

Veio, então, o primeiro disco, que, embora se chamasse 1989, sairia um ano antes. O lançamento foi seguido de dezenas de shows em Belo Horizonte e no interior de Minas Gerais, no Rio de Janeiro, em São Paulo. Porém, em 1990, a banda se desfez novamente – dessa vez, pelo afastamento de Eduardo Mortimer, que foi para São Paulo cursar doutorado em Educação, com um período na Inglaterra, entre os anos de 1992 e 1993.

Durante esse tempo de permanência no exterior, Mortimer compôs canções instrumentais. Ao retornar ao Brasil, reencontrou os antigos companheiros de banda e reuniu mais uma vez O Grande Ah!, que incorporou novo gênero musical. O segundo CD, Mariantivel, lançado em 1997, é todo instrumental. “Nunca tivemos mesmo estilo algum”, brinca Mortimer, referindo-se ao fato de a banda ter gravado um disco de pop-rock, seguido por outro de música instrumental.

Fotos: Arquivo pessoal
O Grande Ah! em momentos distintos da carreira: novo CD marca volta às origens
O Grande Ah! em momentos distintos da carreira: novo CD marca volta às origens

Herdeiros

Com ou sem estilo, a banda está na ativa até hoje. A atual formação conta com Mortimer, hoje professor da Faculdade de Educação da UFMG, Pimenta, docente do Departamento de Física da Universidade, e mais quatro integrantes: dois filhos de cada um dos membros fundadores. Isso mesmo: O Grande Ah! atravessou uma geração e se tornou atividade em família. Este ano, o grupo planeja produzir novo disco, só com canções que marcaram o início da trajetória da banda. Ou seja, MPB.

Para Mortimer, o ofício de professor se casa tão bem com o de músico que, no auge do sucesso do grupo, ele não fazia separação entre uma coisa e outra. “Era tudo misturado em minha vida, e os alunos gostavam de ter um professor músico”, recorda- -se. Aliás, para ele, aulas e shows enquadram-se na mesma categoria: ambos são performances. “Com a música, trabalho a dicção, a entonação e uma série de fatores fundamentais em sala de aula”, observa.

Já Pimenta utiliza seu vasto conhecimento em Física para compreender a construção musical. “Muitas vezes, quando estou tocando, o pensamento matemático me auxilia na compreensão de sequências de notas e harmonias”, revela. Além das atividades com O Grande Ah!, o professor se dedica a uma roda de choro em que toca semanalmente no bairro Santa Teresa, junto com Oscar Nassif de Mesquita, seu colega no Departamento de Física – sintomaticamente, a dupla se chama Os Quarks.

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