REVISTA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Ano 12 - Número 20 - abril de 2013

perfil Eneida Maria de Souza

Na carruagem com Eneida

PAULA ALKMIM

Foca Lisboa
Eneida Maria de Souza

Se Mário de Andrade vestisse saias, ele seria a professora Eneida Maria de Souza. Pelo menos é assim que o diretor da Editora UFMG e professor da Faculdade de Letras, Wander Melo Miranda, a define: “É uma intelectual que se inspira no Mário de Andrade, mas claro que em outro tempo, outra situação e na condição de mulher, o que é uma questão muito importante. Apesar de Eneida não fazer uma crítica feminista, toda a análise dela é perpassada pela questão do gênero”.

Eneida Maria de Souza conta que a atração por Mário de Andrade se iniciou com interesse pela literatura popular: “Ele não foi só um ficcionista e um poeta, também foi um pesquisador, escreveu livros sobre folclore, cultura popular, livro de viagens. Correspondeu-se com gente do Brasil inteiro, deixando um legado que se manifesta principalmente nas cartas. É um grande incentivo trabalhar com esse material. Desde os anos de 1970 eu nunca deixei de pesquisá-lo. Atualmente trabalho em um livro com uma colega da PUC-Rio sobre prosa modernista e uma parte vai ser sobre o Mário”.

O gosto pelos livros dessa mineira, nascida em Manhuaçu, na Zona da Mata, veio cedo. A mãe era professora de português. O pai também gostava muito de ler. “Eu tinha uma biblioteca em casa. Li toda a obra do Monteiro Lobato durante o curso primário”, conta. Em 1966, forma-se em Letras pela UFMG, tornando-se professora logo depois. Sem parar de estudar, especializa-se na própria UFMG, ainda na década de 1960. Em 1968, passa em um concurso e começa a lecionar na Universidade.

Pedra mágica

Com a criação dos cursos de mestrado no Brasil, defende, em 1975, sua dissertação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) sobre o escritor Autran Dourado. Posteriormente, deixa o país para defender tese de doutorado na Universidade Paris 6, na França. No trabalho – que se tornou um marco para a área –, ela investigou uma das mais importantes obras do Modernismo brasileiro, Macunaíma, de Mário de Andrade. O estudo deu origem ao livro A pedra mágica do discurso, publicado pela Editora UFMG e já em segunda edição.

“Eneida é hoje uma das mais importantes especialistas em Mário de Andrade. De maneira muito pouco ortodoxa, isenta dos cacoetes com os quais ele normalmente é lido. É uma leitura que consegue trazer um olhar novo, arejado”, destaca Wander.

Em 1985, foi uma das fundadoras do doutorado em Literatura Comparada da Faculdade de Letras da UFMG, ao lado de Ana Lúcia Gazzola, Vera Casanova e Ruth Silviano Brandão. Reconhecido com o conceito máximo da Capes, o curso – que nasceu da necessidade de se pensar sobre teorias até então importadas – tem um pouco da cara de Eneida: destaca-se pela trandisciplinaridade. “Os alunos muitas vezes vêm da filosofia, história, psicologia, artes plásticas”, conta.

Quando presidiu a Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic), de 1988 a 1990, Eneida ajudou o curso a se consolidar ao firmar intercâmbios com universidades brasileiras e do exterior. A criação do doutorado e o avanço dos estudos culturais provocaram uma guinada na área. “Até então, a formação era muito voltada para teoria, depois veio a necessidade de se trabalhar com o contexto. Foi por isso que me interessei pela relação entre a obra e a vida do escritor. Um dos grandes avanços da teoria literária foi sair da análise meramente textual”, avalia Eneida.

Quatro anos depois, em 1989, novamente inscreveu seu nome na história da UFMG, fundando o Acervo de Escritores Mineiros, juntamente com Wander Melo e a também professora da Faculdade de Letras da UFMG Melânia Silva de Aguiar. Sediado na Biblioteca Universitária, o espaço reúne cerca de 25 mil volumes e, além de abrigar livros e teses, oferece outros materiais para a pesquisa, como fotografias, manuscritos e correspondências de escritores como Henriqueta Lisboa, Cyro dos Anjos e Murilo Rubião.

A professora emérita de Literatura Brasileira da UFMG Leticia Malard participou da banca do concurso para professor titular de Eneida, em 1991, e considerou o trabalho “brilhante”. De lá para cá, se tornaram amigas. “A marca registrada dela como professora, pesquisadora e orientadora é o entusiasmo pela profissão, a disciplina e a responsabilidade, a segurança na fixação de objetos e metas. Seu lema é ‘podem contar comigo’”, relata Leticia. Em 2003, Eneida tornou-se, também ela, professora emérita.

Nas décadas em que lecionou na UFMG, Eneida contribui ainda para a formação de várias gerações de pesquisadores. “Nos anos de 1970 tive aulas com ela de Teoria da Literatura. Sempre escolhia suas disciplinas em razão da qualidade. Ela trazia – e ainda traz – uma extrema conexão com o que está acontecendo no mundo. Levava para dentro da sala o que havia de mais novo na literatura, no cinema, na música, nas artes plásticas. Não era uma aula apenas sobre literatura. Sem falar no rigor teórico e na sensibilidade. Eu me considero seu discípulo”, conta Wander Melo Miranda, que atualmente escreve e organiza várias publicações ao lado de Eneida.

As viagens

Eneida traz a literatura até no nome, como atesta a epopeia de Virgílio. A saga do troiano Enéas narrada pelo escritor é também uma história de viagem que vai de Troia (na Grécia) à Itália. Segundo o escritor Silviano Santiago, na introdução do livro Tempo de pós-crítica (Veredas&Cenários, 2007), “nada se perde e tudo se distrai no andar da carruagem teórica de Eneida. Tudo se distrai para que, paradoxalmente, as coisas reencontrem o eixo”.

Se biografar é metaforizar o real – como ela escreve –, dá para dizer que ‘viagens’ de Eneida percorrem distâncias ainda maiores. Não é à toa que está sempre a lançar reflexões sobre temas como o “caráter móvel dos signos”.

O que chama a atenção em Eneida, em primeiro lugar, é que a cabeça dela não para nunca de ferver. Começando pela pluralidade de interesses e de objetos de estudo que vão dos escritores, como Jorge Luis Borges, Mário de Andrade e Pedro Nava, à música, com pesquisas sobre Carmen Miranda, Caetano Veloso e Chico Buarque, passando ainda por áreas como cinema, artes plásticas e até mesmo arquitetura. “Uma cabeça teórica”, nas palavras de Wander; “uma dimensão criativa e diferenciada nos modos de ver e ler autores ícones da literatura latino-americana”, acrescenta Letícia.

A sensação de deslocamento começou ainda na infância, aos sete anos de idade. No livro Janelas indiscretas – Ensaios de crítica biográfica – publicado pela Editora UFMG e finalista no Prêmio Jabuti, de 2012 – Eneida conta: “Naqueles primeiros dias de março de 1951, não sabia que as aulas do curso primário iriam começar. Mamãe me alertou, aflita, que já estava na hora de me aprontar para ir à escola. Foi uma correria e, nessa aflição, até a cozinheira trocou o sal pelo açúcar, o arroz ficou adocicado e foi impossível almoçar. A lembrança desse dia sempre me evocou a ideia de inversão, de deslocamento, uma coisa pela outra; esse momento marcaria minha atitude diante da vida para sempre”.

Sair do lugar, no sentido físico da viagem, inclusive é um de seus passatempos favoritos, com preferência confessa por lugares considerados exóticos, como a Ásia. “Ela vai aonde pouca gente se aventura a ir. Lugares como a Sibéria, Mongólia, Coreia. Acha tudo lindo, sem nada a reclamar. Às vezes até enxerga ali um toque de Paris e de Londres”, ressalta Letícia.

Olhos abertos

Mesmo quando o assunto não é literatura, Wander adora viajar com Eneida e destaca que ela é uma excelente companhia. “Não é uma turista acidental, viaja com os olhos muito abertos, vorazes para devorar tudo que vê e consegue trazer perspectivas de outras culturas. Ela nunca está no lugar, pois o tempo todo se desloca de um campo do saber para outro, sem medo. Eneida já praticava a interdisciplinaridade, antes mesmo dessa palavra estar na moda. Ela não tem medo de correr risco”, afirma Wander.

Quando o assunto é escrever e publicar, Eneida também não para. São quase 30 títulos. Entre eles destacam-se Crítica cult (Editora UFMG, 2002); Pedro Nava: o risco da memória (Funalfa, 2004) e O século de Borges (Editora Autêntica, 2009). A professora emérita também organizou diversas publicações como Modernidades tardias (UFMG, 1998) e Mário de Andrade e Henriqueta Lisboa – Correspondências (Edusp/Peirópolis, 2010). Esta última conquistou o segundo lugar no Prêmio Jabuti 2011, categoria Biografia.

Aos 69 anos, o plano de Eneida é continuar escrevendo: “O momento da escrita é um pouco doloroso, mas me dá muita satisfação ver o livro pronto”, afirma. E, ao que tudo indica, novos objetos de pesquisa ainda virão. “Tenho muito interesse pelos governos Lula e Dilma, a preocupação com a causa social, a ascensão de uma classe menos favorecida, a questão das cotas. Os intelectuais e a imprensa não entram muito nesse assunto”, conclui Eneida.

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Eneida Maria de Souza

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