Como podemos preservar um dos recursos naturais mais importantes para a vida na Terra?
Por Caju Nunes Pires, estudante do curso de Geologia e
Rafaela Caroline Teixeira, estudante do curso de Física,
bolsistas de extensão do Núcleo de Ações Educativas e Acessibilidade do Espaço do Conhecimento UFMG
22 de março de 2025
A água é um importante recurso para a manutenção da vida que conhecemos hoje e a utilizamos de diferentes formas: para beber, nos alimentarmos, na navegação ou na produção de energia. Ela desempenha um papel essencial na nossa sobrevivência. Por causa disso, historicamente, a água é uma causa das disputas e ocupações de territórios.
No século XV, uma parte da população inca resolveu fazer diferente: construir uma cidade isolada no topo de uma cordilheira. Encontraram grandes desafios geográficos: as águas das chuvas escoavam muito rápido e o rio mais próximo cortava o vale ao lado da montanha, sendo muito distante verticalmente e inviabilizando o transporte de grande quantidade de água. Para solucionar esse problema, construíram um sistema de manejo hidráulico e um tipo de represa que permitia a captação e distribuição de água da chuva, possibilitando a construção e a prosperidade da cidade de Machu Picchu.
As ruínas incas estão localizadas em uma alta cordilheira e são cercadas em três lados pelo sinuoso e turbulento Rio Urubamba, cerca de 600m abaixo. (Créditos: Erika Skogg, Nat Geo Image Collection/National Geographic).
Esse exemplo não é isolado na sociedade inca. O respeito desse povo com a água fez com que cada engenharia hidráulica criada fosse sustentável e adaptada à geografia local. Na cidade de Tipón, por exemplo, foram feitos inúmeros canais de distribuição para as terras agrícolas, construídos de forma que os sedimentos fossem depositados ao fundo do canal, permitindo a filtração da água.
Os canais de água são adaptados ao relevo montanhoso em espécies de terraços. (Créditos: McKay Savage).
Vemos então que a necessidade do manejo hídrico sempre esteve presente na sociedade. Entretanto, ao longo do tempo, o respeito e a preservação desse elemento não acompanharam tal urgência como deveriam. A dependência da água na sociedade moderna cresceu, devido a nossa demanda energética e aumento populacional, mas ao mesmo tempo, nas cidades, houve o distanciamento da relação de cuidado com a natureza.
No entanto, no Brasil existem culturas que tem suas raízes ligadas às águas afetivamente, o que se reflete em uma relação consciente. Para diversos povos indígenas, a água, além de ser uma necessidade física, desempenha um papel espiritual e está presente em muitos aspectos da vida. Para os Krenak, que se localizam entre as cidades de Resplendor e Conselheiro Pena em Minas Gerais, o Rio Doce (Watu) faz parte da família.
“Esse nosso rio-avô, chamado pelos brancos de rio Doce, cujas águas correm a menos de um quilômetro do quintal da minha casa, canta. Nas noites silenciosas ouvimos sua voz e falamos com nosso rio-música. Gostamos de agradecê-lo, porque ele nos dá comida e essa água maravilhosa, amplia nossas visões de mundo e confere sentido à nossa existência” (Krenak, 2022).
Ailton Krenak às margens do Rio Doce, símbolo da luta indígena e da resistência contra a destruição ambiental. (Créditos: Projeto Preserva).
As comunidades ribeirinhas, presentes em todo o território brasileiro, vivem às margens de rios e têm suas vidas traçadas pelo curso d’água, desde sua forma de sustento até meio de transporte e fonte de vida. Assim, possuem um profundo conhecimento sobre pesca e agricultura, que são transmitidas oralmente de geração em geração e que garantem sua alimentação ao longo dos anos.
A importância da água para os povos originários e comunidades tradicionais é refletida no respeito e cuidado, ao entender a necessidade e fragilidade do ser. Esses povos escolhem viver de forma envolvida e harmônica, interagindo com a natureza. A seguir, veremos uma exposição digital produzida pela Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), em parceria com a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, intitulada Água e Povos Indígenas.
A exposição traz imagens sobre a relação da água com os povos Kayapó, Krahô e Waurá. Na mostra, podemos ver a importância dela para esses povos e como está presente no cotidiano de uma maneira muito próxima e afetiva.
Em contraste, nos centros urbanos, vivemos de uma forma menos envolvida, nos separando da natureza, em que a maioria das pessoas nem mesmo tem contato com as nascentes de rios ou cachoeiras.
“A humanidade é contra o envolvimento, é contra vivermos envolvidos com as árvores, com a terra, com as matas. Desenvolvimento é sinônimo de desconectar, tirar do cosmo, quebrar a originalidade.” (Santos, 2023).
A água acaba sendo domesticada e é vista como um recurso a ser consumido, como acontece em centros de distribuição privados. O que deveria ser um bem de uso coletivo acaba sendo uma mercadoria inacessível para muitas pessoas. Por causa desse distanciamento, muitas vezes, não sabemos o processo para que a água chegue a nossas casas ou sequer temos noção da quantidade que usamos em nosso cotidiano.
Diante da necessidade de conscientização do uso da água doce mundial, em 2002, o professor Arjen Hoekstra, enquanto trabalhava no Instituto UNESCO para Educação em Recursos Hídricos, fundou o conceito de “pegada hídrica” – um indicador de volume do uso desse recurso. Analisar o processo integralmente, calculando o volume de água doce desde a captação para o consumo até o descarte da porção poluída, permite uma perspectiva da nossa relação de consumidor ou produtor com o cuidado com a água doce.
Ao visualizarmos os volumes de água gastos por nós, indiretamente, conseguimos entender a nossa marca de destruição no mundo. Na figura abaixo, temos o volume utilizado durante a produção de alimentos que consumimos diariamente:
Quantos litros de água são necessários para produzir alimentos? (Créditos: Water Produce Food, Iberdrola, 2011).
Esse volume que não enxergamos no produto final, mas que foi gasto, é chamado de “água virtual”. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas desenvolveu um site em que você pode calcular sua pegada hídrica com base no seu consumo. Confira clicando aqui.
Apesar de entendermos como impactamos, é importante compreendermos a dimensão desse impacto efetivamente no mundo. Os maiores consumidores e poluidores da água no Brasil são os setores industriais e do agronegócio. Segundo a Agência Nacional das Águas (ANA), nas próximas décadas nosso país passará por um déficit hidráulico, ou seja, gastaremos mais do que a capacidade de recarga das reservas. No cenário atual, existem centenas de municípios brasileiros que estão em situação de stress hídrico, no qual a procura é maior que a oferta, devido a má gestão e infraestrutura hídrica nacional. No infográfico, abaixo, conseguimos ver essa relação de gasto por cada setor.
Gasto de água por setor. (Créditos: Agência Nacional de Águas (ANA), Manual de Usos da Água no Brasil, 2021).
O nosso distanciamento com o cuidado da água leva a uma crise hídrica que causa impactos ambientais imensuráveis. Um exemplo é a Lagoa da Pampulha, cartão postal de Belo Horizonte, que passa por diversas degradações desde o seu surgimento em 1943. Criada com o propósito de ser um reservatório de água para a cidade e também um local de lazer para os habitantes, durante muito tempo houveram banhistas e a prática de esportes aquáticos como canoagem e barco a vela. Em 2016, o conjunto arquitetônico da Pampulha recebeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). No entanto, devido à contaminação e a ameaça à biodiversidade, esse patrimônio corre o risco de perder a titulação.
Como consequência do rápido e desordenado crescimento das cidades da Região Metropolitana de Belo Horizonte, o esgoto que desagua no reservatório da Lagoa vem de córregos contaminados de regiões em que o saneamento básico não é efetivo. Com isso, desde a década de 1980, a água tornou-se imprópria para banho ou para qualquer outro fim recreativo. Ao longo dos anos, diversas tentativas para a despoluição da lagoa foram feitas. Mesmo assim, a água dos rios não chega completamente limpa na Lagoa da Pampulha.
Igreja de São Francisco de Assis, obra do conjunto arquitetônico da Pampulha, localizada às margens da lagoa. (Créditos: Marcílio Gazinelli).
Em 2023, foi criada uma campanha da rede de abastecimento de água e rede de esgoto, juntamente com a Prefeitura de Belo Horizonte, para eliminar o lançamento de esgoto até 2026 em 100%. Porém, mesmo com todas as alternativas, a remediação é muito lenta e não será possível recuperar as condições originais.
Mesmo com todos os problemas enfrentados nessa área, ela continua sendo um ponto de encontro de belorizontinos, moradores da região metropolitana e demais turistas. A orla da Lagoa da Pampulha está sempre movimentada com a presença de pessoas correndo, pedalando, visitando o Conjunto Arquitetônico da Pampulha e praticando diversas outras atividades. Muitos bares e restaurantes também se localizam à sua margem.
Percebemos que a água, elemento tão importante para as populações, seja por questões afetivas, espirituais ou para o equilíbrio de todos os ecossistemas, vem sendo um elemento cada vez mais ameaçado por diversos fatores. Por esse motivo, torna-se necessário a adoção de práticas sustentáveis e de preservação para que futuras gerações possam usufruir desse bem tão precioso. Hoje, 22 de março, celebramos o Dia Mundial da Água, data criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1922, para nos lembrarmos da necessidade de preservação desse recurso.
Acompanhe o Espaço do Conhecimento UFMG para conferir oficinas e atividades que abordam temas como o consumo consciente e os fenômenos físicos que envolvem a água por meio de experimentos realizados pelo público.
Referências
DIEGUES, A. C. Água e cultura nas populações tradicionais brasileiras. ENCONTRO INTERNACIONAL: GOVERNANÇA DA ÁGUA, v. 1, p. 1-20, 2007.
HOEKSTRA, A. Y., et al. Manual de Avaliação da Pegada Hídrica: Estabelecendo o Padrão Global. Earthscan, 2011.
KRENAK, A. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. p. 14.
ORLOFF, C. R. Tipon: Insight into Inka Hydraulic Engineering Practice. Latin American Antiquity. 2019; 30(4):724-740. doi:10.1017/laq.2019.70.
SANTOS, A. B. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Jandaíra, 2023. p. 16.
WRIGHT, K. R. (2021). The Masterful Water Engineers of Machu Picchu. Water, 13, 3049. https://doi.org/10.3390/w13213049.
Ailton Krenak II: “O Watu, o nosso avô, está em coma”.
Ribeirinhos – Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.