Como e por que as mulheres transformam a ciência? – Espaço do Conhecimento UFMG
 
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Como e por que as mulheres transformam a ciência?

05 de julho de 2022

 

Na exposição Demasiado Humano, no Espaço do Conhecimento UFMG, há uma instalação muito interessante para discutirmos o papel dos sujeitos na produção do conhecimento científico. A obra Cosmologia, de Marcelo Bicalho e Márcia Sobral, apresenta um redemoinho feito de papel branco, em que se localizam alguns elementos da natureza, como plantas e animais. Ao seu redor, diversas luzes coloridas apontam para o redemoinho, quebrando a neutralidade da obra. 

 

Podemos compreender essas luzes como os diferentes olhares que os indivíduos, e, portanto, os cientistas, lançam sobre o mundo. Se reconhecermos que os olhares que homens e mulheres lançam sobre o mundo diferem, podemos perguntar se o gênero influencia a maneira como se produz a ciência. As mulheres produzem ciência de maneira diferente de homens?

 

Registro da montagem da Cosmologia do terceiro andar (Foto: Celton Oliveira)

 

Quando o conceito ocidental de ciência moderna começou a ser construído, no século XVI, entendia-se que seus pilares eram a neutralidade, a racionalidade e a objetividade. Ou seja, a ciência, através de um método rígido, serviria para construir um conhecimento próprio, independente de qualquer crença ou noções individuais. Ao lado dessa premissa, existia a ideia de que os sujeitos portadores de todas essas características – aqueles que possuíam a habilidade de produzir o conhecimento científico –, eram os homens. 

 

Enquanto o homem era visto como o exemplo máximo da razão, a mulher era entendida como seu oposto, a representante da emoção, e, portanto, incapaz de fazer a ciência ideal. Assim, as mulheres foram sistematicamente excluídas do processo de constituição da ciência. Elas estiveram afastadas das produções filosóficas, históricas, científicas e culturais. Entre os séculos XVI e XVIII, as poucas exceções podem ser contadas a dedos, e é necessário notar que essas eram brancas e pertencentes às classes privilegiadas economicamente. Compreende-se que nem todas as mulheres ocuparam os espaços privilegiados de produção do conhecimento em velocidades iguais, até esse paradigma começar a ser questionado. 

 

A partir de 1970, um grupo de mulheres feministas começou a sistematizar uma crítica ao modo como a ciência moderna foi moldada. Um de seus pontos mais importantes foi argumentar contra a ideia de “sujeitos universais”, ou seja, a existência de uma única maneira de ser homem – cuja essência seria a racionalidade – e uma única maneira de ser mulher – cuja essência seria seu oposto. Elas argumentaram que as noções de “ser homem” e “ser mulher” nunca existiram naturalmente, mas eram construções históricas, categorias forjadas ao longo do tempo. 

 

Além disso, as feministas defenderam que a ciência é sempre impregnada de valores culturais e materiais, e que esses partem, sobretudo, de quem investiga. As crenças, comportamentos e o lugar que o cientista ocupa na sociedade moldam a sua pesquisa. Na prática, o fato de a produção do conhecimento científico ter sido dominado por séculos por homens brancos, não fez com que a ciência fosse mais neutra, mas, ao contrário, que se tornasse mais parcial e distorcida. Como observamos os efeitos disso? 

 

A ausência de mulheres influenciou profundamente quais temas eram escolhidos para serem estudados, quais eram as perguntas feitas pelos investigadores e quais eram os resultados obtidos. Por muito tempo, estudos sobre a saúde da mulher e sobre o corpo feminino foram negligenciados. Isso se deu, em grande medida, porque esses problemas sequer eram formulados e nem se possuía a confiança de que eles valessem o esforço. Vamos ver um exemplo: 

 

Sinologista Emily Martin, autora do livro The egg and the sperm: How science has constructed a romance based on stereotypical male-female roles, 1991. 

 

Até recentemente, na literatura científica sobre como ocorria o processo de fertilização do óvulo, o espermatozóide era reconhecido como a parte ativa do processo, responsável por penetrar a capa do óvulo e depositar seus genes, iniciando, assim, o desenvolvimento do embrião. Nessa fábula quase heróica, o óvulo era visto como a parte passiva, que apenas aguardava a atuação do espermatozóide vigoroso. Mulheres feministas evidenciaram que essa narrativa apenas refletia as relações de poder entre homens e mulheres na sociedade, e não serviam para explicar, de fato, como ocorria a fertilização. Um dos trabalhos mais conhecidos sobre o tema é o de Emily Martin, da Universidade de Nova Iorque. Em 1991, publicou o artigo O óvulo e o esperma: como a ciência construiu um romance baseado nos estereótipos masculino-feminino (no original, The egg and the sperm: How science has constructed a romance based on stereotypical male-female roles.

 

Entende-se hoje que tanto o óvulo quanto o espermatozoide são importantes para a fertilização, pois sabemos que o próprio óvulo é o responsável pelos processos bioquímicos que permitem sua penetração. Nos últimos anos, livros e textos foram revistos a fim de retirar essas metáforas sexistas ultrapassadas. Além disso, esses novos estudos são importantes para explicar formas de infertilidade até então não explicadas, assim como para pensar novos métodos contraceptivos. Esse é só um exemplo, entre muitos, de como a ocupação de mulheres transformou o conhecimento científico.

 

A crescente entrada de mulheres nesses espaços auxiliou, além de outras mudanças, a erodir alguns papéis de gênero. A historiadora da ciência Londa Shiebinger mostrou, em seu texto Mais mulheres na ciência, a variação, ao longo de algumas décadas, na forma com que estudantes estadunidenses desenhavam cientistas. No período inicial da pesquisa, 92% dos desenhos retratavam os cientistas como homens. No final dos anos 90, observou uma diminuição das representações masculinas em comparação aos testes anteriores, quando 16% dos estudantes passaram a desenhar mulheres e 14% faziam desenhos ambíguos. De outra parte, a grande maioria dos alunos  (96%) continuou a representar os cientistas como causcasianos, demonstrando que, apesar de uma desconstrução inicial dos estereótipos de gênero, a invisibilidade étnica perdurou (SCHIEBINGER, 2008). 

 

No Brasil, apesar de os números de mulheres com mestrado e doutorado serem superiores ao dos homens, as mulheres representam apenas 33% do total de bolsistas de Produtividade em Pesquisa do CNPq, concedidas como reconhecimento a pesquisadores de maior produção. A desigualdade de gênero aumenta nas áreas de Ciências Exatas, Engenharia e Computação (CNPq, 2021). Ainda, uma pesquisa realizada pelo mesmo órgão mostrou que, em 2015, apenas 7% do total de bolsas de produtividade eram destinadas a mulheres negras, demonstrando uma dupla marginalização desses sujeitos (PINHEIRO, 2019). Dessa forma, em termos étnico-raciais, ainda temos muito o que construir rumo à uma ciência diversa!

 

Como sugere a obra Cosmologia, mulheres cientistas como Emily Martin, e tantas outras evidenciaram que é impossível haver uma ciência neutra (e isso não é ruim!). O que entendíamos como neutralidade, na verdade se tratava da predominância de uma visão masculina sobre o mundo. Aquelas que se tornaram cientistas – direito que foi conquistado pelas lutas sociais – trouxeram novas perguntas e resultados que antes passavam despercebidos pela visão dominante, além de contribuírem para a desconstrução dos papéis de gênero impostos pela sociedade. 

 

Assim, se os sujeitos são plurais e lançam diferentes olhares sobre o mundo, quanto mais luzes tivermos, mais próximos estaremos a uma ciência crítica, democrática, e comprometida com as demandas sociais!

 

[Texto de autoria de Ana Vila Pacheco, aluna do curso de graduação em História e estagiária do Núcleo de Ações Educativas do Espaço do Conhecimento UFMG]

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BANDEIRA, Lourdes. A contribuição da crítica feminista à ciência. Revista Estudos Feministas, v. 16, p. 207-228, 2008. Disponível em:<https://www.scielo.br/j/ref/a/LZmX67CZRJScmfcdsy4LxzJ/?lang=pt

CNPq. Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência. Publicado em 11/02/2021. Disponível em: <https://www.gov.br/cnpq/pt-br/assuntos/noticias/destaque-em-cti/dia-internacional-de-mulheres-e-meninas-na-ciencia

HARDING, Sandra. ¿ Existe un método feminista. Debates en torno a una metodología feminista, v. 2, p. 9-34, 1998. 

KELLER, Evelyn Fox. What impact, if any, has feminism had on science? [Tradução: Maria Luiza Lara; Revisão: Valter Arcanjo da Ponte e Kikyo Yamamoto] In: cadernos pagu (27), julho-dezembro de 2006: pp.13-34. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cpa/a/bSBYCtG9zPV55wBnbQkkpCb/abstract/?lang=pt >

MARTIN, Emily. The egg and the sperm: How science has constructed a romance based on stereotypical male-female roles. Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 16, n. 3, p. 485-501, 1991.

PINHEIRO, Bárbara. AS MULHERES NEGRAS E A CIÊNCIA NO BRASIL: “E EU, NÃO SOU UMA CIENTISTA?” COMCIÊNCIA, São Paulo, 08/02/2019. Disponível em: <https://www.comciencia.br/as-mulheres-negras-e-ciencia-no-brasil-e-eu-nao-sou-uma-cientista/>  

SCHIEBINGER, Londa. Mais mulheres na ciência: questões de conhecimento. Apresentação de Maria Margaret Lopes. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, supl., jun. 2008, p.269-281. Disponível em: 

<https://www.scielo.br/j/hcsm/a/LZcRqYbsQR4cxYkgfCGyjyr/?format=pdf>