Um ensaio sobre a história, a modernidade, o paranormal e as lendas urbanas da cidade
29 de outubro de 2024
Caro(a) leitor(a), você acredita em fantasmas?
Você já passou por uma situação em que passos não identificados foram ouvidos, as portas se abriram sozinhas, luzes se apagaram, sombras se moveram, cachorros latiram, gatos se atiçaram, pelos se arrepiaram e, de repente, você não estava mais sozinho?
Ou você prefere negar a existência destas entidades? Citando que não existem evidências científicas destes seres e que todos os registros são montagens e golpes, ou que todas as experiências desta natureza surgem de devaneios da mente humana que, por meio de sentidos duvidosos, acredita ter visto algo que não existe.
Experiências pessoais sempre serão profundamente diferentes umas das outras, em especial quando falamos de um tópico tão oculto e até mesmo místico. Entretanto, como não abordar um assunto como esse? Considerando que nossa espécie sempre buscou significado para o que acontece com a consciência depois da morte, desde as mais antigas civilizações conhecidas pela História.
Independente de acharmos que fantasmas existem ou não, para a História, contudo, eles são reais. Não em seus estados plasmáticos e espectrais, mas enquanto contos e lendas que realmente foram escritas e repassadas pelas sociedades dentro das cidades. E em Belo Horizonte isso não poderia ser diferente.
Fundada em 12 de dezembro de 1897, Belo Horizonte surgiu sobre o Curral del Rey, antigo arraial que teve sua existência encerrada para que a nova capital de Minas Gerais pudesse viver. No entanto, a ideia desse projeto, que trazia tanta alegria para a recém-formada república brasileira, levou um destino cruel aos moradores do pequeno povoado, que foram expulsos e tiveram suas casas destruídas.
Dos destroços do antigo Curral, nasceram os primeiros fantasmas desta cidade – espíritos e entidades que perderam tudo para a máquina do progresso -, que hoje vagam nas ruas pelos mais diversos motivos: vingança contra os construtores e habitantes da metrópole, em busca de um amor que lhes foi negado enquanto estavam vivos e até mesmo atrás de pagamento pelos serviços que prestaram na construção da cidade.
Curral Del Rey, arraial que antecedeu a cidade de Belo Horizonte, em 1896. (Créditos: APCBH).
Aqui contaremos algumas destas lendas, mas também buscaremos entender como elas podem ter surgido e porque, nos dias de hoje, nem nos lembramos mais dessas assombrações que no passado eram conhecidas por todos.
Primeiramente, é importante lembrar que histórias de fantasmas podem surgir a qualquer momento, basta um relato para outros ouvintes e pronto: surge uma nova lenda. Porém, nem todos os fantasmas são iguais e nem todos se tornam famosos. Por isso, os primeiros fantasmas de que falaremos são aqueles que não conhecemos, esquecidos ou dispensados da consciência popular por não terem tido sua existência creditada, os sem nomes e sem aparência, reduzidos a meros truques da luz de um poste defeituoso, entidades cujos sumiços não foram notados. Estes são os primeiros dos quais temos que nos lembrar.
Em seguida, temos os fantasmas que foram afortunados o suficiente para serem lembrados, mas que ainda não são tão bem conhecidos. Um deles é o Avantesma da Lagoinha, que vaga pelas ruas do bairro que lhe deu seu nome, descarrilhando os bondes que um dia existiram na capital mineira, rindo de seus atos, impregnando o ar com o cheiro de enxofre que exala e andando algumas vezes sobre os viadutos da cidade, como o Santa Tereza.
Viaduto Santa Tereza, no começo do século XX, região onde o Avantesma da Lagoinha podia ser visto. (Créditos: Antônio Paulo Mello/Arquivo pessoal).
Além dele, na região do bairro da Serra, um fantasma assombra a Rua do Ouro: um homem vestido completamente de branco, possível funcionário público forçado a deixar Ouro Preto para trabalhar na nova cidade. Sempre se faz visível à meia-noite, vestindo um terno, chapéu e um manto de neblina, que se espalha pelo bairro.
Descendo da Serra, chegamos à Savassi, onde uma moça “branca, longa e fria”, como descrito por Carlos Drummond de Andrade, vestida de noiva, com um perfume de jasmim e dama da noite, vaga pelas ruas em busca de um amor que nunca teve, pronta para arrastá-lo até o pós vida com ela.
Agora, dois dos fantasmas mais canônicos de Belo Horizonte: a Loira do Bonfim, que pode aparecer tanto de dia quanto de noite, rondando a Praça da Estação, onde pede direções e caronas para o cemitério, ou diretamente no Bonfim, onde ela pode ser vista vagando entre os túmulos; e a Maria “Papuda”, uma moradora que sofria de Bócio e que foi expulsa de sua casa, devido à construção de Belo Horizonte, sendo forçada a viver nas ruas até a sua morte. Maria assombra a Rua da Bahia, próximo à avenida Afonso Pena. Talvez ela seja o fantasma do Palácio da Liberdade que, de acordo com a lenda, em um ato de vingança, levou a vida de dois governadores que morreram dentro do prédio. Há relatos de que até mesmo Itamar Franco teria tido interações com a entidade.
Rua da Bahia, após a esquina com a Av. Afonso Pena, em 1920, um dos locais onde a Maria “Papuda” poderia ser vista. (Créditos: Acervo/Jornal Estado de Minas).
Em vida, as almas que deram origem a esses fantasmas eram pessoas comuns, donas de casa, condutores de bonde, mineiros, trabalhadores do Estado, etc. Não eram políticos ou oligarcas, herdeiros e grandes fazendeiros, mas indivíduos do cotidiano e da vida comum. Quando morreram, talvez tenham ido parar nos cemitérios mais afastados da cidade, seus túmulos foram abandonados e depois reivindicados pela prefeitura. Isso se não tiveram seus corpos doados como indigentes para hospitais, universidades e museus. Nem todos os fantasmas nascem iguais e, apesar de ser um dos poucos fenômenos que une toda a humanidade, nem mesmo a morte é igual para todos. Os políticos que “bateram as botas” no Palácio da Liberdade foram enterrados sob milhares de flores em estruturas tão elaboradas quanto tumbas… Já os operários que construíram essas estruturas foram em grande parte esquecidos.
Surge, entretanto, outro problema quando tratamos destes fantasmas históricos de Belo Horizonte, uma vez que, quando ao menos nos lembramos das histórias dessas assombrações, não acreditamos mais neles.
Como integrantes da população de Belo Horizonte, ao nos aproximarmos da Afonso Pena de madrugada pela Rua da Bahia não sentimos mais medo da Maria “Papuda”. Não sentimos a ameaça de presenças fantasmagóricas ao andarmos pelas ruas da Savassi em noites escuras e a mesma coisa acontece nos viadutos visitados pelo Avantesma ou nas ruas do bairro da Serra onde o Homem de Branco vaga. Os fantasmas de Belo Horizonte acabaram sendo esquecidos, as gerações mais novas sequer possuem conhecimento destas entidades e, caso saibam quem elas são ou como se manifestam, não se importam ou não se assustam.
Uma explicação para este fenômeno do esquecimento também serve para nos mostrar de que modo essas entidades surgiram para começo de conversa e ela pode ser encontrada em um conceito da arquitetura. Marc Augé é um antropólogo francês que nos traz o conceito de Non-place, ou “lugar nenhum”. Estes são espaços mortos, genéricos, que desprezam a identidade dos indivíduos que o habitam, como o corredor de um hotel, a parada de um ônibus, a sala de espera de um aeroporto, um estacionamento de shopping, uma estação de metrô, etc. Lugares que são construídos para serem usados por diversas multidões que não possuem coesão social entre si.
Lugares mortos não são feitos para serem recordados e ninguém se lembra profundamente deles. A ideia é que estes espaços possam ser confortáveis para todas as pessoas que passarem ali, pois eles são igualmente alienantes para todos. Entretanto, tais locais, por serem tão desprovidos de significado, acabam sendo incômodos, já que a mente humana não lida bem com o vazio e busca preencher estes espaços com coisas que talvez nem existam, como fantasmas.
Quando Belo Horizonte foi construída, a parte operária da população, responsável pela construção da cidade, acabou sendo exilada para as periferias da nova capital. Isso fez com que as principais regiões do centro se tornassem lugares mortos para essas pessoas.
As entidades que falamos aqui surgiram da alienação das pessoas que deveriam habitar aquelas regiões porque, quando afastadas daqueles ambientes, elas os preenchem com entidades similares a si mesmas. Não era um político que assombrava o palácio, pois os políticos já se sentiam confortáveis e representados neste ambiente, mas sim uma dona de casa que nunca pôde ver os interiores deste prédio. Não era um oligarca que aparecia na rua do Ouro. Era um homem que foi arrastado de Ouro Preto, contra sua vontade, para trabalhar na capital… E assim as lendas seguem.
Contudo, quando estes ambientes deixam de ser lugares mortos, tais entidades tendem a sumir porque prédios, ruas, avenidas, casas e cemitérios podem ser construídos muito mais rápidos do que uma cultura. E quando Belo Horizonte foi fundada, a cultura era justamente um dos elementos que lhe faltavam.
Por meio da cultura, nos apropriamos dos ambientes urbanos, transformamos estes locais mortos e pertencentes a ninguém em nossos lugares. Estabelecemos diferentes identidades para diversos grupos em vários locais. Lojas próprias, grafites específicos, bares especializados, calçadas pintadas, bandeiras penduradas, bebidas servidas e outros elementos fazem com a cidade se torne uma casa para os indivíduos que ali habitam e ocupam.
Por fim, é necessário preservar estas histórias fantasmagóricas como uma forma de guardarmos a memória de um passado excludente. Como disse a professora Heloísa Starling, do Departamento de História da UFMG: “Esses fantasmas têm que continuar aparecendo. No dia em que eles deixarem de aparecer, BH perdeu sua memória. E a lembrança do que fomos, nos ensina o que podemos ser no futuro”.
[Texto de autoria de Thiago Araújo, graduado em História pela UFMG]
Referências
AUGÉ, M. Non-places: introduction to an anthropology of supermodernity. London. 1995. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/122106/mod_resource/content/1/Marc%20Aug%C3%A9%20Non-Places-%20An%20Introduction%20to%20Supermodernity%20%202009.pdf. Acesso em: 19 dez. 2022.
BUTLER, J. Introdução: Vida precária, vida passível de luto. In: ____. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p. 13-55.
HARTMAN, S. Vênus em dois atos. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, 2020, p. 12-33.
KRENAK, A. “Não se come dinheiro”, “Sonhos para adiar o fim do mundo” e “A vida não é útil”. In: ____. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 7-47 e 93-116.
STARLING, H. M. M. Fantasmas da cidade moderna. Márgenes: Revista de Cultura, 2002. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/margens_margenes/article/viewFile/10701/9450. Acesso em: 19 dez. 2022.
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