Perspectivas indígenas sobre museus – Espaço do Conhecimento UFMG
 
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Perspectivas indígenas sobre museus 

Apontamentos para práticas colaborativas

 

16 de maio de 2023

 

Em 2022, saí da minha comunidade para começar minha graduação em Antropologia na UFMG. Nas disciplinas do curso, comecei a estudar sobre patrimônio cultural e museus. Também me tornei mediadora em um dos museus da universidade, o Espaço do Conhecimento UFMG. Essas experiências me levaram a refletir sobre como seria pensar um museu indígena. Como poderíamos traduzir os conceitos de museu e patrimônio cultural para a perspectiva indígena?

 

Partindo da concepção de que museus são espaços que abrigam patrimônios culturais materiais e imateriais, um museu para nós indígenas não é apenas um prédio e não é apenas uma sala, ele é toda a aldeia, todo o território indígena. Nossa riqueza, nosso conhecimento, está por toda parte do nosso território, e está vivo. Assim como em um museu, há pessoas que têm a tarefa de cuidar desse patrimônio todos os dias. Ele não está lá à toa e não pode ser deixado sem cuidados. É nesse sentido que aldeia inteira é um museu.

 

Marciane Rocha em Visita Mediada a Mundos Indígenas (Créditos: Fernando Silva)

 

O conceito de patrimônio material, ou cultura material, é difícil de traduzir para nossa língua, para nosso modo de pensar, porque os objetos que produzimos não são apenas coisas, eles têm vida dentro deles. Isso tem a ver com o processo de fabricação dos objetos. Vou usar o exemplo de um ritual que nós povo ye’kwana fazemos, chamado shiichu’kwä ajiimadö. Este ritual é celebrado quando um bebê completa os primeiros meses de vida. Neste ritual ele receberá pela primeira vez os ornamentos de miçanga que nós ye’kwana usamos cotidianamente e também terá seu corpo pintado pela primeira vez, de acordo com nosso costume. Ele tocará o chão com seus pés pela primeira vez, ao ser colocado no akai, o balanço infantil que é parte de nossa tradição. Esse balanço se parece com o andador que as crianças não indígenas usam, entretanto, ao invés de rodinhas ou uma base fixa no chão, o balanço é pendurado no teto da casa por uma corda comprida e a criança pode se movimentar com segurança, apoiando seus pequenos pés no chão, enquanto brinca. Durante o ritual, um de nossos sábios que possui aichudi (cantos) cantará e soprará todos os objetos, ornamentos e pintura, e também sobre o bebê, que é pintado e ornamentado por sua mãe. É o sopro de vida do cantor e as palavras que ele canta que transformam os ornamentos, pintura e balanço em objetos de proteção para o bebê. Usando estes objetos, a criança estará protegida contra as doenças e os perigos. Não são os objetos em si, mas o canto e o sopro de vida do sábio que fazem com que estes objetos sejam capazes de proteger a criança.

 

Os cantos aichudi são muito importantes para nós ye’kwana. Há muitos tipos de canto: para proteção, para curar doenças, para garantir que as roças cresçam saudáveis e fortes. Os sábios e sábias de nossas comunidades são pessoas que têm cantos e usam nas mais diversas situações. Além dos cantos, usamos também certas plantas especiais para curar e proteger as pessoas. Essas plantas não são plantas comuns, elas são gente, são pessoas, mas de tipo diferente de nós humanos. Para usar essas plantas, temos que ter muito cuidado e seguir regras para coletá-las e prepará-las, do contrário, ao invés de curar, elas causariam mal às pessoas, pois a gente-planta fica aborrecida quando não as tratamos de maneira respeitosa. Costumamos colocar essas plantas dentro de pequenas cabaças, que são chamadas de etödötoojo. As mulheres costumam amarrar pequenos etödötoojo nos cestos que utilizam no trabalho na roça, também amarramos no pescoço das crianças, que usam como colar. Ao fabricar um etödötoojo, além das plantas, são usados os cantos aichudi. Também aqui são os cantos e as plantas que enchem o etödötoojo de vida, de força protetora. Se não fossem as plantas e os cantos, ele seria apenas uma pequena cabaça.

 

Quando um sábio aprende os cantos aichudi, estes passam a fazer parte de quem ele é. Cada vez que o sábio canta, ele dá um pouco da sua própria sabedoria e da sua própria força de vida para proteger as pessoas. Por isso, nós não permitimos que os cantos sejam gravados, escritos ou usados de qualquer jeito ou por qualquer pessoa, pois isso enfraqueceria o sábio dono do canto, que pode correr o risco de perder seu conhecimento e esquecer os cantos. Assim, os objetos que fazem parte do nosso cotidiano (as flautas usadas para fazer música nas festas, as cestas que usamos para carregar alimento da roça, os colares de miçanga, a pintura corporal, os etödötoojo e tantos outros) são ao mesmo tempo nosso patrimônio material e imaterial. Eles têm vida dentro deles e carregam sabedoria. É por isso que podemos então pensar a nossa casa e a nossa aldeia como um grande museu, que guarda nosso patrimônio e o mantém vivo.

 

Objetos Ye’kwana (Créditos: Fernando Silva)

 

Em dezembro de 2019, o Espaço do Conhecimento UFMG inaugurou a exposição “Mundos Indígenas”. Na exposição, cinco povos indígenas foram convidados a apresentar um pouco de seus mundos para os não indígenas. Cada povo escolheu, através de curadores indígenas, um conceito de seu mundo para apresentar aos visitantes. Além do meu povo, participam da exposição os povos Yanomami, Maxacali, Xakriabá e Pataxoop. Nós ye’kwana escolhemos o conceito de weichö. Acreditamos que cada povo tem o seu weichö, seu modo próprio de viver e se relacionar com os outros povos e também com as plantas, animais e o meio ambiente. Assim, apresentamos na exposição o ye’kwana weichö, em que se destacam nossa alimentação, a maneira de ornamentar nossos corpos com miçangas e pintura, as nossas narrativas wätunnä (que contam sobre a criação do mundo e de todos os seres que nele vivem e são transmitidas pelos nossos sábios), nossos cantos aichudi, as cestarias que usamos cotidianamente, os instrumentos que tocamos em nossas festas e rituais. Além dos objetos da exposição, os visitantes também podem ouvir nossa música e assistir trechos do filme Ye’kwana Weichö, que retrata cenas do nosso cotidiano na aldeia.

 

Cestaria Ye’kwana (Créditos: Fernando Silva)

 

Quando fomos convidados para participar da exposição, nós fizemos uma reunião comunitária para discutir a proposta. Sempre fazemos assim quando somos convidados a participar de algum evento ou projeto. Nessas ocasiões, escutamos principalmente as palavras de nossos sábios, as pessoas mais velhas da comunidade e que tem mais conhecimento. Eles nos aconselham e nos ajudam a fazer um bom trabalho. Ao começarmos a montar a exposição, os sábios nos alertaram sobre os cuidados que deveríamos ter. Nós iríamos levar nosso conhecimento para fora de nossa comunidade, para um museu na cidade. Como expliquei, muitos objetos que foram feitos especialmente para a exposição carregam com eles a força de vida dos artesãos e seus cantos. No filme exibido, estão as imagens e palavras de nossos sábios. Precisávamos proteger esse conhecimento, para que ele pudesse circular com segurança fora de nossa comunidade. Para isso, foi fundamental nossa presença durante a montagem da exposição, em Belo Horizonte. Cláudio, Salomé e o filho deles, Robélio, foram as pessoas escolhidas para levar as peças da exposição até Belo Horizonte, montá-las e participar da inauguração. Cláudio e Salomé, além de experientes artesãos, são donos de aichudi. Eles sabiam como proteger bem o nosso patrimônio que seria exibido no museu. Aquelas peças que estão lá estão cheias de vida e são os cantos que as mantêm vivas. É preciso protegê-las, e proteger os visitantes também. Caso elas se aborreçam com os visitantes, se elas não forem bem cuidadas, elas também podem lhes fazer mal. 

 

Uma das peças da exposição em especial exigiu muito cuidado. Cláudio trouxe um colar masculino, feito por ele com dentes de duukwadi, a queixada ou porco-do-mato. Esse tipo de colar não pode ser usado por qualquer pessoa em nossa comunidade, pois ele carrega a força de vida de quem fez o colar e também a força da queixada. Junto ao colar, Cláudio trouxe um etödötoojo preparado com certas plantas protetoras, cantadas com aichudi. No texto que os curadores ye’kwana escreveram para o catálogo da exposição, a importância do etödötoojo é explicada:

O colar masculino feito com dentes de Duukwadi, a Queixada, só pode ser exposto com a presença de um etöödötojo, que é uma pequena cabaça preparada por um sábio, na qual são inseridas certas plantas protetoras, sobre as quais cantos achudi são cantados no momento da preparação. Plantas e cantos passam a atuar de forma a proteger as pessoas da ação poderosa do colar de Duuukwadi, que pode causar efeitos indesejados naqueles que não estão preparados para entrar em contato com ele. A presença dos cantos contidos nas plantas do etöödötojo é a maneira através da qual os sábios ye’kwana permanecem cuidando dos visitantes da exposição, mesmo de longe. Estes sábios conhecem os protocolos para negociar a relação entre as pessoas e a gente-Duukwadi.” (YUDUWANA, V. C et all, 2020: 70).

 

Colar Ye’kwana com dentes de duukwad (Créditos: Fernando Silva)

 

Nas disciplinas do meu curso, tenho lido sobre como museus em vários países têm sido levados a repensar suas práticas, principalmente com relação à exposição de peças indígenas. No passado distante, muitas peças foram levadas para os museus sem o consentimento dos povos que eram os donos dessas peças. Alguns museus começaram processos de repatriação das peças, devolvendo-as aos povos a quem elas pertencem. Outros museus têm negociado com os povos indígenas novas formas de manter e cuidar das peças. A experiência com a exposição “Mundos Indígenas” no Espaço do Conhecimento UFMG pode servir como um exemplo de como é possível pensar práticas museais que sejam feitas de forma colaborativas com os povos ali retratados. Garantir a presença e protagonismo indígena, entretanto, não deve acontecer somente durante o processo de curadoria e inauguração da exposição – deve ser mantido durante todo o tempo de duração da exposição. 

 

No começo do texto eu disse que para nós, indígenas, no museu que é nossa aldeia, as peças também são cuidadas todos os dias por nossos sábios, que garantem que elas permaneçam vivas, através dos cantos. Para que os museus possam receber exposições de peças como as nossas, eles devem negociar conosco as condições para que elas não morram, para que elas sejam cuidadas de acordo com nossos ensinamentos. Eu gosto de pensar que quando estou trabalhando como mediadora no Espaço do Conhecimento, também ajudo a manter nosso weichö vivo. As peças da nossa exposição são como se fossem meus parentes, e eu fico feliz em estar perto delas.

 

[Texto de autoria de Marciane Rocha, artesã ye’kwana, aluna do curso de Antropologia e bolsista do Núcleo de Ações Educativas]

 

Referências Bibliográficas

YUDUWANA, V. C.; ROCHA, V.; ANDRADE, K. V. “Weichö”. In: Ana Maria R. Gomes; Deborah Lima; Mariana Oliveira; Renata Marquez. (Org.). Mundos Indígenas. Belo Horizonte: Espaço do Conhecimento UFMG, 2020, p. 53-77.