Volume 21 – n 2

Editorial:

Com este segundo fascículo do volume 21, continua a política de se abranger os mais diversos campos da História Natural e de se examinar a interação entre os Homens e a Natureza.
A preocupação em se resgatar os conhecimentos populares sobre plantas medicinais é uma tônica da pesquisa farmacêutica desde o final do século XX, que levou ao desenvolvimento dos estudos de etnofarmacologia. No caso do Estado de Minas Gerais, a falta de interação positiva entre os indígenas e os colonos de origem europeia provocou, com certeza, a perda de muitos saberes a respeito das plantas nativas, que não foi totalmente compensada pela introdução de plantas africanas. Ao longo do século XX, o desenvolvimento da indústria farmacêutica, a destruição dos ecossistemas regionais, a perda de prestígio da cultura popular e a repressão aos saberes relacionados às religiões consideradas desviantes pelas autoridades, levaram a um recuo preocupante dos conhecimentos tradicionais. Seu desaparecimento e a possível extinção de espécies vegetais úteis podem impedir o reconhecimento de novos princípios ativos pela indústria farmacêutica moderna.
O artigo de Maria das Graças L. Brandão e colaboradores mostra a existência, desde a primeira parte do século XVIII, de uma intenção de médicos portugueses em se aproveitar as plantas medicinais brasileiras na farmacopeia. O naturalista A. de Saint Hilaire, já no início do século XIX, preocupava-se com os riscos de extinção de vegetais úteis de Minas Gerais em razão do desmatamento. Em 1929, a Farmacopeia Brasileira mencionava 36 plantas locais utilizadas em remédios; os autores do artigo percorreram 155 municípios do estado de Minas Gerais, entrevistando mais de 200 informantes para saber se as conheciam ainda. Verificaram que a grande maioria destas espécies era esquecida por mais da metade dos informantes; quem as conhecia mais profundamente eram as pessoas mais velhas, evidenciando assim o fato que os saberes tradicionais não eram repassados de modo eficaz para as novas gerações. Esta perda acelerada é preocupante, quando se considera que as plantas utilizadas na medicina popular costumam ter suas virtudes confirmadas pelas análises químicas.
O artigo de Suzana Hirooka traz uma interessante contribuição ao conhecimento do instrumental indígena do Brasil ocidental. Com efeito, descreve os alargadores de aros de borracha (usados para modelar as panturrilhas das mulheres) em cerâmica, que não tinham sido até então apresentados na bibliografia etnográfica – tais artefatos estão ausentes na obra fundamental “Dicionário de Artesanato Indígena Brasileiro” de Berta Ribeiro. Esta informação não é apenas interessante para os etnólogos, pois a autora frisa que os Enawenê Nawê fazem também alargadores com madeira. Desta forma, poderiam, no passado, tê-los fabricado de pedra. Ora, instrumentos de mesma morfologia, tanto de pedra quanto de cerâmica, são frequentemente encontrados em sítios arqueológicos, onde costumam ser interpretados como trempes (aqueles de cerâmica) ou mãos de pilão (aqueles de pedra) pelos pré-historiadores. Uma revisão das coleções arqueológicas à luz da existência de formas para alargar os aros, provavelmente permitirá uma reinterpretação de peças cuja morfologia não seria muita adequada à utilização como trempe nem como mão de pilão.
Mais uma vez se verifica o quanto o conhecimento da cultura material indígena é ainda insuficiente, e como a etnografia é importante para a interpretação dos vestígios do passado.
Todos sabemos que o Homem imita a natureza – aliás, fazê-lo foi, durante mais de dois milênios, a meta dos artistas ocidentais. No entanto, há ocasiões nas quais temos a impressão que a Natureza também imita o Homem. Os arqueólogos bem o sabem, que se confrontam periodicamente a existência de objetos (sobretudo de pedra) que tanto poderiam ser o resultado da indústria humana quanto dos jogos das forças naturais: pedras lascadas por choques naturais ou acidente térmico, pedras polidas pelos rios ou alisadas e modeladas por ventos carregados de areia, etc. O artigo de Ulisses Penha apresenta uma forma que parece inédita: grandes “rodas” de pedra encontradas no município de São Romão – MG, cuja perfeição sugeriu inicialmente tratar-se de obra humana. Um estudo no local permitiu, no entanto, verificar que se tinham formado em tempos geológicos recuados, elaboradas por forças naturais ainda não identificadas. Talvez a divulgação desta jazida leve outros geólogos a informar outras ocorrências parecidas. De qualquer forma, o espaço onde se concentram estas “rodas” e um pavimento natural mais “clássico” sofre atualmente uma forte erosão e certamente merece ser protegido como monumento natural.
Apesar da expressão consagrada, os Homens pré-históricos nunca viveram uma “Idade da Pedra”. Utilizavam instrumentos de madeira, osso, concha e outros materiais, além da pedra. No entanto, apenas esta se reservou ao longo dos milênios. Por isto, a importância dos vestígios líticos, os mais abundantes a chegar entre as mãos dos pré-historiadores; estes, sim, vivem no mundo das pedras. A maior parte dos estudos arqueológicos de vestígios de pedra concentra-se sobre as pedras lascadas à mão livre. Até bem pouco, raros eram os arqueólogos capazes de reconhecer os instrumentos fabricados sobre bigorna e, hoje ainda, as modalidades desta técnica de lascamento, particularmente adaptada ao trabalho de quartzos de qualidade medíocre, são amplamente desconhecidas dos pesquisadores. Os pesquisadores da UFMG, trabalhando em regiões onde o quartzo era muito mais disponível que o sílex, foram pioneiros na análise das técnicas de trabalho sobre bigorna (tradicionalmente designado como “bipolar”). Aproveitando a experiência adquirida em vários países de diversos continentes, o artigo que escrevemos juntamente com dois colaboradores enriquece significativamente, com novas observações, as primeiras publicações sobre lascamento bipolar que tínhamos publicado nesta mesma revista Arquivos do Museu de História Natural nos anos de 1980. Mostra as possibilidades até então subestimadas de se controlar, até certo ponto, o resultado do fracionamento e do retoque sobre bigorna; desta forma, descobrimos que muitas pré-formas de lâminas de machado no Brasil tinham sido preparadas com esta técnica. O retoque sobre bigorna, cuja utilização pelos pré-históricos foi há tempo identificada para obtenção de dorsos abatidos, é também útil e até, preferível, ao lascamento à mão livre, para certas formas de retoque.
O artigo de Katerin Bohorquez Grondona e colaboradores apresenta uma revisão bibliográfica sobre a importância do órgão vomeral. Aponta em quais ordens e famílias este órgão é presente e mais ou menos ativo, sendo que influi sobre o comportamento sexual. Os autores analisam particularmente suas características em duas espécies de mamíferos. As relações entre o órgão vomeronasal e o sistema olfativo, ambos sensíveis a feromônios, não foram ainda completamente esclarecidas. A presença de resquícios deste órgão e sua funcionalidade em humanos continuam sendo discutidos entre os pesquisadores.
Em cada um dos próximos fascículos dos Arquivos pretendemos divulgar para aos leitores um dos setores e Centros Especializados do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG. Iniciamos este programa com o Setor de Museologia, apresentado pela Museóloga responsável, Cláudia Cardoso. O Setor de Museologia cuida da política de aquisição de acervo, do planejamento e da execução das atividades educativas e culturais, promovendo também intercâmbio com Instituições congêneres. Possui três reservas próprias (Museológica, Científica, assim como estufas para plantas vivas), sendo que os diversos Centros especializados do Museu possuem coleções próprias.
Com estas contribuições, nossa revista confirma seu propósito de divulgar as pesquisas realizadas no museu, assim como em outras Unidades da UFMG, abrindo também espaço para membros das comunidades científicas de outras Instituições e de outros estados.

André Prous,
Editor dos Arquivos do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG.


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