Volume 23 – n 1

Editorial:

Após um volume especial dedicado à bibliografia da arqueologia préhistórica brasileira, com este volume 23 voltamos a divulgar estudos que tratam de diferentes áreas da História Natural. Este trata das Ciências da Terra e da Vida, incluindo a bio-antropologia, que aborda o Homem como ser biológico. No entanto, até em suas produções culturais o corpo humano está envolvido intensivamente, como ilustra um dos artigos deste fascículo. Os vestígios deixados pelos humanos após sua morte não deixam de nos informar sobre seus corpos, assim como sobre suas ideias e produções. Parte dos vestígios é resgatada pelos colecionadores e pelos arqueólogos. No entanto, não se trata de objetos mortos: eles ganham uma nova vida como portadores de memória e exemplo. Assim sendo, sua preservação torna-se uma atividade essencial no âmbito dos Museus. Reunimos artigos que tratam de minerais, de animais de populações humanas pretéritas e de um objeto deixado por um artista popular há pouco desaparecido. O mundo vegetal é representado pelo texto que trata do Jardim Botânico da UFMG – importante centro especializado do Museu de História Natural.
O artigo de P. Debrot, J. Karfunkel e colaboradores representa uma área importante na história de Minas Gerais: a mineração e garimpagem de gemas. Traz sua contribuição ao propor, a partir de um estudo experimental, um método objetivo para determinar o local de origem das gemas encontradas em posição secundária, nas aluviões dos sistemas fluviais. Como arqueólogo, permito-me chamar a atenção dos arqueólogos sobre este método que poderia ser aplicado aos vestígios arqueológicos encontrados nos rios, após terem sido transportados a partir de sítios erodidos.
A pesquisa apresentada por A. Melo Silva e seus colaboradores foi realizada no espaço do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG. O levantamento das espécies de borboletas mostrou que a variedade e a riqueza destes animais não crescem simplesmente paralelamente ao grau de recomposição da vegetação florestal. Pelo contrário, áreas abertas são particularmente apreciadas. Pela diversidade dos seus ambientes – que incluem tanto clareiras quanto áreas de vegetação nativas ou plantadas, o Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG oferece um rico ambiente de refúgio para estudo da fauna que sobreviveu cercada pelo agressivo meio urbano de Belo Horizonte.
M. de Almeida Jota e F. dos Santos oferecem não somente aos biólogos, mas, também, aos arqueólogos pré-historiadores, uma bemvinda síntese e revisão da contribuição da genética de populações ao estudo das origens das populações ameríndias. Mostra tanto as limitações das técnicas disponíveis quanto suas possibilidades, fornecendo assim um texto didático que faltava para os professores e os alunos avançados. Apresenta tanto os elementos de consenso quanto as questões em debate, sem deixar de mencionar achados isolados que não se enquadram nos moldes das principais hipóteses atuais. Nota-se que, ao se estudar a genética inclusive a partir das populações indígenas atuais, os biólogos se confrontam a problemas de ética – uma questão que os autores não deixam de mencionar. Por ouro lado, ao comparar grupos linguísticos, etnias, populações biológicas vivas e mortas, os biólogos são impelidos a arriscar assimilações que muitos dos antropólogos que estudam as culturas recusam ou, pelo menos, consideram com receio. Estes estudos em zona de pesquisa fronteira entre o biológico e o cultural abrem, no entanto, ricas perspectivas. Pesquisadores das duas áreas, portanto, não devem fugir ao confronto, mas colaborarem para aprenderem uns com os outros e acharem juntos ferramentas comuns de trabalho.
André Strauss há tempo vem estudando as coleções esqueletais do Museu de História Natural e participa de um grupo que pesquisa as mais antigas populações americanas. Oferece outro texto didático de grande valia, ao fazer uma revisão das práticas mortuárias préhistóricas mais antigas desde o Panamá, ao norte, até o extremo sul da América. Seus estudos em Lagoa Santa evidenciaram a complexidade dos rituais praticados há mais de 7.000 anos nos abrigos desta região, famosa entre os pré-historiadores do continente americano. Esta diversidade se encontra em outras regiões, mostrando que as populações de caçadores-coletores (seria, a nosso ver, preciso acrescentar “pescadores”) do início do Holoceno, por mais “simples” que os autores costumem considerá-los, não eram homogêneas e tinham práticas diferenciadas (até mesmo dentro de um mesmo grupo).
Ao abordar a(o) gestualidade das (ou dos) oleira(o)s na decoração de algumas vasilhas pré-históricas amazônicas, o artigo de L. Panachuk avança numa direção esboçada pelos pesquisadores da UFMG no último decênio. Trata-se de uma linha ainda muito pouco explorada, embora ela nos permita uma aproximação muito grande com pessoas que morreram há séculos ou até milênios. Não se trata de um estudo dirigido apenas ao reconhecimento de individualidades: os hábitos motores são em parte condicionados pela aprendizagem – realizada dentro de um contexto social. Até que ponto os potes eram trabalhados (montados, decorados, etc.) por um indivíduo, ou elaborados por mais de uma pessoa? Seriam estas de mesma habilidade e graus de desenvolvimento físico, ou veríamos, nos vestígios materiais, indícios de que pessoas experientes treinariam aprendizes (sejam estes parentes, membros de outra classe de idade, ou de outra subdivisão)? A autora pretende aprofundar-se nesta linha ao longo do seu doutorado. Obviamente, não se trata de uma pesquisa que possa ser realizada de forma corriqueira pelos arqueólogos – hoje geralmente limitados por prazos exíguos. No entanto, mostra a possibilidade de se explorar este campo, que nos remete ao objetivo final da arqueologia, que não é o estudo dos vestígios materiais em si, mas, antes de tudo, o encontro com pessoas que deixaram suas marcas individuais além de participar dos valores da sua comunidade.
Fechamos a seção de artigos com a apresentação da restauração de uma peça de artesanato do vale do rio Jequitinhonha (MG) doada em 1974 ao Museu de História Natural da UFMG. Esta intervenção foi realizada no recém-criado Laboratório de Arqueometria e Preservação em Arqueologia do MHNJB/UFMG. A peça em foco é representativa de uma produção muito variada e original. Agora famosa e popular, até os anos de 1970, era restrita a um mercado regional praticamente autárquico. Com os programas de desenvolvimento do vale realizados nos anos de 1970 – trazendo eletrificação, chegada de engenheiros e operários nas pequenas aglomerações, a produção artesanal do vale do Jequitinhonha manteve suas caraterísticas tradicionais, mas também incluiu elementos do mundo “moderno”; por exemplo, as personagens representadas em cerâmica começavam a ostentar um relógio no punho. Os autores do artigo sobre a moringa realizaram uma pesquisa bem-sucedida para descobrir a autoria da peça. Desta forma, puderam conhecer parentes do oleiro (já falecido) e receber deles esclarecimentos sobre a origem de várias características da peça. Observando as “características intrínsecas” de degradação da moringa mencionadas pelos autores, nos vem à mente o fato que os artesãos não estavam trabalhando para produzir objetos eternos a serem conservados em Museus, mas fabricavam objetos utilitários – e ao mesmo tempo bonitos – que se supunham ter vida breve. Isto é característico das sociedades tradicionais (do passado ou da atualidade), enquanto a intelligêntsia ocidental moderna desenvolveu o mito da “obra de arte” eterna, que alguns artistas atuais procuram “desmistificar” ao criar formas frágeis e performances fugazes. Faria sentido uma museografia destas novas produções? Qual seria ela? O artigo de Almada e Rosado, ao exemplificar o trato de um vestígio material, nos leva paradoxalmente a pensar sobre as outras formas de preservação da nossa cultura.
Continuando nosso programa de apresentação dos centros especializados do Museu de História Natural e Jardim Botânico, F. Santos e seus colaboradores lembram a complexa história da formação do Jardim Botânico, oficialmente implantado em 2009 com a implantação de um plano de ação. Antes disso, infelizmente, o Museu perdeu a guarda de importante herbário, que acabou sendo reunido à coleção do Instituto de Ciências Biológicas, no Campus da UFMG. No espaço verde do jardim Botânico se encontram cerca de 400 espécies vegetais (das quais quase a metade são nativas). Os autores apresentam o orquidário, o viveiro, o jardim sensorial e outros projetos de pesquisa e de extensão que permitem ao Museu trabalhar com as comunidades do entorno e com as escolas.

André Prous,
Editor dos Arquivos Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG.


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