Ao final do século XVIII toda a economia e política
européias se transformariam radicalmente. É o século das contradições,
movimentado por conflitos religiosos, por insurreições camponesas
e pelo crescimento econômico. É uma sociedade rural, aristocrática
e católica em constante conflito com outra, urbana, burguesa e
protestante. Ao observarmos a arte desse período, entretanto,
nossa primeira impressão é de imobilidade ou de crise. O Rococó
é frívolo segundo os defensores do Neoclássico que, por sua vez,
é idealista e frio segundo os defensores do Modernismo. Uma análise
contemporânea não pode ceder às facilidades de uma visão unilateral.
Chegaríamos a uma concepção ridícula que faz da arte do século
XVIII um hiato, que os livros de história da arte consideram genericamente
apenas como um período de crise. Na verdade o que vemos é um momento
como o que antecede à ebulição, quando o sistema poderia passar
por estático, não fosse o ruído das moléculas se agitando pelo
calor. Ao observar o movimento interno das forças artísticas contraditórias
que se desenvolveram durante o "longo" século XVIII,
encontraremos diversos indícios de que a aparente crise é na verdade
um processo de maturação dos diversos desenvolvimentos da técnica
e expressão artísticas desde, talvez, o século XIII. Estes indícios
são especialmente essenciais para compreender a relação dos artistas
com a paisagem num século que, apesar de ter sido responsável
pelo conceito de "jardim paisagístico", é tão carente
de pinturas de paisagem.
O final do século XVII é marcado por um declínio geral da pintura
como arte autônoma devido tanto ao pleno desenvolvimento do Barroco
nos países católicos, quanto à hostilidade puritana às visões
fantasiosas e emocionais. A máxima teatralidade e a intenção de
criar esplendor e movimento do Barroco exigiam que todas as artes
contribuíssem para uma unidade, o essencial era o efeito de conjunto
e não o detalhe; e grande parte dos pintores italianos e franceses
desse período foram forçados a se especializar em decoração de
interiores, desviando-se de uma produção artística autônoma. Igreja,
reis e até príncipes menores recrutavam artistas para ostentar
poderio e criar a aura do direito divino.
Exemplo disso é o famoso Palácio de Versalhes, construído entre
1660 e 1680 pelo rei Luís XIV da França, o "Rei Sol".
Apesar da dimensão e imponência dos prédios, não foi um projeto
muito ousado em termos decorativos. Comparado a edifícios anteriores,
sua fachada parece simples; mas seus jardins, que se estendem
por quilômetros, garantiram enorme êxito. Criados por André Le
Nôtre (1673-1700), sob supervisão direta do próprio Rei, ampliaram
definitivamente o projeto arquitetônico para muito além do edifício.
Suas avenidas de arbustos aparados, fontes, urnas, estatuária
variada e tanques traduzem uma relação na qual o homem tenta moldar
completamente a natureza. Um exemplo dela é o guia escrito pelo
próprio Luís XIV para visitação dos jardins e que provavelmente
foi usado pelos jardineiros para ligar ou desligar fontes e outros
atrativos na ordem exata necessária a uma ótima fruição das vistas.
A radicalidade dessa nova relação fica óbvia quando comparamos
a ordem das florestas de Versalhes com a vegetação orgânica e
ameaçadora de Albrecht Altdorfer (1480-1538, alemão): em
ambos os casos a caracterização tradicional de paraíso já não
satisfazia a imaginação e a curiosidade, mas enquanto Altdorfer
representa um mundo selvagem, Le Nôtre cria um jardim secular
comparável ao divino.
ALTDORFER, "S. Jorge".
1510. Fonte: WebMuseum |
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Os edifícios e jardins monumentais semelhantes a Versalhes tornam
clara a verdadeira função e finalidade das formas barrocas: o apelo
máximo à emoção através do movimento e da variedade. Durante o período
em redor de 1700, os artistas tinham trânsito livre para a alegria
e para a extravagância, mas não havia muito espaço para as artes
individuais.
Na Itália, apenas um grupo de artistas conseguiu atuar fora da "orgia
decorativa", os pintores e gravadores de panoramas que serviam
de
souvenirs, principalmente em Veneza. É o caso de
Canaletto
(Giovanni Antonio Canal, 1697-1768), cuja luz ganha nova qualidade
quando verdadeiramente atraído por uma
cena,
ou de Francesco Guardi (1712-93), que tinha gosto pelos movimentos
e evocava idéias com algumas pinceladas vigorosas e efeitos audaciosos.
Na França, Jean-Antoine
Watteau (1684-1721) foi provavelmente
o único comparável aos mestres do início do XVI, sua concepção de
uma vida alheia a privações, sua predileção por cores e decorações
delicadas cairia no gosto da aristocracia que nesta época já trocava
a decoração pesada do Barroco pela relativa leveza do Rococó.
Desde o século XIII, os sentimentos sobre a natureza vêm se modificando.
Perspectivas positivas como a de
Francesco
Petrarca (1304-1374), que gozava
"a liberdade
e solidão entre as montanhas, florestas e ribeiros", como
escreveu a um amigo, não eram compartilhadas pela maioria dos homens
medievais:
"A natureza
no seu conjunto ainda é perturbante, vasta e atemorizante;
e as vastidões abrem ao espírito muitos pensamentos perigosos.
Mas, neste campo selvagem, o homem pode criar um jardim
fechado." (CLARK, Kenneth.
Paisagem na arte. [2ed]. Lisboa:
Ulisseia, [1949], p; 26) |
Só no final do século XVII, o desejo de Petrarca de fruir a paz
dos campos, expresso nas pinturas de Simone
Martini (1284-1344)
sob a forma de
microtheos,
estava definitivamente livre das noções perturbadoras que impunham
"jardins fechados". E essa natureza sem ameaças só poderia
ganhar plena representação graças ao completo domínio da atmosfera,
da luz suave, das transições de planos, de todos os aspectos técnicos
e expressivos da pintura de paisagem que se desenvolveram até Jacob
van
Ruysdael (1628-82, alemão, atuante na Holanda).
MARTINI, "Frontispício do códice
'Virgílio' de Petrarca". Fonte: Wikipedia |
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RUYSDAEL, "Raio de sol".
Fonte: Louvre |
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Na Inglaterra, em contrapartida, a pintura sofria com a sobriedade.
Os interiores das Igrejas eram agora projetados como salas de reunião
que convidavam ao recolhimento e à meditação. Os homens ricos, por
sua vez, não tinham mais interesse por palácios, mas por
country
houses, projetadas segundo regras de "bom gosto" que
respeitavam leis da arquitetura clássica. O temperamento geral do
País opunha-se à fantasia e às emoções irreprimidas e, por isso,
havia pouquíssimas encomendas de pinturas, em sua maioria, apenas
retratos. Além disso os cavalheiros elegantes, orgulhosos de seu
"conhecimento", preferiam mestres italianos reconhecidos
aos artistas nacionais.
Jardins como os de Versalhes eram considerados absurdos e artificiais.
Homens como Willian
Kent (1685-1748), que imitou estreitamente
a "Villa Retonda" de Andrea Palladio (1508-80) em sua
"Chiswick House" (1725), inventaram então os "jardins
paisagísticos", jardins criados como pinturas e que, por isso,
seduziriam pintores como Claude
Lorrain (Claude
Gellée,
1602-82, francês). Lorrain, apesar de pintar diretamente da natureza,
subordinava toda a percepção e conhecimento das aparências ao sentimento
poético total, sendo por isso considerado herdeiro da poesia de
Giorgio de Caltefranco
Giorgione (1477-1510, italiano). Para
parecer "natural", um jardim deveria aparentar-se justamente
às paisagens pintadas de forma mais idealista, àquelas que seguiam
o preceito
"Ut pictura poesis" (Horácio) e que
remetiam ao mito da "Idade de Ouro". A própria noção de
natureza se transforma: só é verdadeira aquela na qual o homem atua
para devolver-lhe a primordialidade perdida.
Sir Joshua
Reynolds (1723-92) foi o primeiro pintor
inglês a satisfazer a sociedade elegante setecentista. Fundador
da
Royal Academy of Art, acreditava que a verdadeira arte
é a dos grandes mestres renascentistas e defendia ser possível ensinar
regras de suposto "bom gosto" e procedimento correto desde
que houvesse meios e instalações para o estudo das obras-primas
italianas. Sua maior luta seria contra a desvalorização do artista
(trabalho manual) enfatizando a invenção poética existente, por
exemplo, na obra de Nicolas
Poussin (1594-1665), severo e
cartesiano pintor francês que procurava dar forma lógica à desordem
natural através do equilíbrio de elementos horizontais e verticais.
Não espanta, portanto, sua rivalidade com Thomas
Gainsborough
(1727-88), que preferia o estudo do modelo às idealizações e que,
por isso, considerava desnecessário o estudo dos italianos. Ambos
sentiam-se infelizes com as encomendas de retratos, mas enquanto
Reynolds queria pintar cenas históricas, Gainsborough queria distrair-se
com as paisagens. A quantidade de contratos para retratos levou
o secretário deste último a escrever:
"O senhor
Gainsborough apresenta os seus humildes respeitos a Lorde
Hardwicke e sempre considerará uma honra servir de qualquer
forma Sua Senhoria; mas no que diz respeito a paisagens
reais tiradas diretamente da Natureza deste país, ele nunca
viu nenhum local que sirva de assunto comparável mesmo às
piores imitações de Gasper ou Claude. [...] se Sua Senhoria
deseja qualquer obra aceitável assinada por Gainsborough,
o assunto assim como as figuras etc., devem ser inteiramente
de seu próprio cérebro... fará muito melhor comprando um
quadro de algum dos bons Mestres Antigos." (CLARK,
Kenneth. Paisagem na arte. [2ed]. Lisboa: Ulisseia,
[1949], p; 57) |
Para satisfação pessoal, entretanto, ele criou diversos esboços
de cenas muito adequadas à época do jardineiro-paisagista; não eram
panoramas desenhados diretamente, mas "composições" paisagísticas
para evocar e refletir uma poesia. Desde então a pintura e a própria
paisagem estarão irremediavelmente ligadas à uma interpretação
"pinturesca"
que se espalhará por toda a Europa no final do século XVIII, acompanhando
a apreciação cada vez maior pelo gosto e instituições inglesas.
Um bom exemplo dessa influência é Jean-Honoré
Fragonard (1732-1806,
francês), que conseguia extrair grandeza e encanto de uma paisagem
real através de efeitos impressionantes.
A EBULIÇÂO
Já em meados do século XVIII, o pintor inglês Willian Hogarth (1697-1764)
prenunciava a ebulição que se concretizaria após a Revolução Francesa
de 1789. Insatisfeito com a preferência de seus conterrâneos pela
pintura dos grandes mestres italianos, procurou desenvolver um novo
tipo de pintura que atraísse o público puritano, postulando sua
utilidade edificante. Durante toda sua vida combateu as regras do
"bom-tom" sem obter qualquer êxito, continuando irremediavelmente
desmerecido como pintor. A mentalidade geral de seus contemporâneos
não admitia novas práticas e o único tipo de discussão possível
até o final do século seriam as querelas entre idealistas e naturalistas,
como entre Gainsborough e Reynolds, que eram pólos muito próximos:
os partidários dos grandes temas poéticos admitiam ser essencial
o estudo da natureza e os defensores da imitação concordavam com
a superioridade da beleza das obras da antiguidade clássica.
Mas na passagem do século a tradição artística começou a ser fortemente
abalada, assim como ocorreu com todas as tradições. A noção de "estilo"
como único modo de fazer torna-se anacrônica numa época que está
demolindo todos os pressupostos. A Era da Razão culminaria com a
primazia da consciência individual, que gerava maior exigência e
necessidade de diferenciação. Mesmo o gótico, considerado degenerado,
ou até o estilo chinês poderiam ser usados para destacar as características
excêntricas do dono do edifício. E o aumento da exigência ocasionou
completa revisão dos padrões clássicos estabelecidos no século XV;
o estudo menos canônico e mais racional da antiguidade grega demonstrou
as enormes diferenças entre a arquitetura grega real e as normas
estabelecidas, por exemplo, no livro de Palladio —até então
utilizado como o guia definitivo para a "boa arquitetura".
O mesmo ocorreria na pintura, que já tinha deixado de ser um ofício
e se transformado em disciplina acadêmica sob patrocínio régio.
A crença, de homens como Reynolds, na impossibilidade de superar
os grandes mestres criaria, entretanto, uma contradição: a produção
das academias continuaria a ser preterida pelos compradores. A solução
encontrada foi a criação dos salões anuais, que acabaram gerando
uma mudança radical no mercado artístico, com conseqüências imediatas
nos temas, nas dimensões e no estilo em geral. No lugar de agradar
ao mecenas, o artista procurará impactar um público comprador.
Apesar da opção por temas cada vez mais grandiloqüentes ser geralmente
considerada sinal de crise, é, na verdade, já sintoma da posterior
abertura do leque de assuntos a figurar nas pinturas. Os temas já
muito explorados, bíblicos, mitológicos e da história antiga e medieval,
cederam lugar a temas de livre escolha do artista: principalmente
heróicos ou da convulsiva história recente, mas também cenas do
cotidiano e paisagens banhadas de luz. A "ordem do dia"
era buscar temas que despertassem a imaginação e o interesse, e
a pintura de paisagem, ainda então um gênero secundário, obviamente
se beneficiará disso.
Excelentes pintores dispuseram-se a elevar esse gênero à categoria
de "grande arte", a maior parte deles na Inglaterra —
país onde, é interessante notar, ocorreu nesse mesmo período o florescimento
da aquarela, técnica muito cara à paisagem por suas características
luminosas e por permitir execução mais direta e que antes era considerada
mera tinta de esboço. Entre eles destacam-se John
Constable
(1776-1837) e William
Turner (1775-1851).
Assim como os criadores dos "jardins paisagísticos" da
primeira metade do século, Turner escolheu como modelo Claude Lorrain;
mas, ao contrário de copiar-lhe a simplicidade, a serenidade e a
solidez, iria reformular seu mundo fantástico em um mundo de pleno
movimento. Em seu "Vapor numa Tempestade de Neve", por
exemplo, vemos uma composição
turbilhonante da qual só podemos
inferir a existência do navio pelo mastro e pela silhueta de seu
casco. Sua intenção era evocar a acirrada luta contra o mar bravio,
através do contraste entre uma luz ofuscante e a opaca sombra da
nuvem tormentosa. Para o observador contemporâneo, Turner está muito
mais relacionado aos poemas românticos que à fantasia arcadista;
o próprio pintor, entretanto, chegou a exigir que suas obras fossem
apresentadas lado a lado com as de Lorrain em uma de suas exposições
nacionais.
TURNER, "Vapor numa tempestade
de neve", 1842. Fonte: The
Artchive |
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A contrapartida ao academicismo de Turner foi Constable, mas sua
oposição aos princípios tradicionais era muito mais radical que
a de Gainsborough: ele dizia querer pintar com os próprios olhos
e, para isso, não escolhia lugares pinturescos, nem lançava mão
de recursos fáceis. Criava arrojados esboços a partir do natural
e os desenvolvia no ateliê, já que o público ainda não aceitava
registros de impressões; o que só viria a acontecer no pleno século
XIX.
CONSTABLE, "Branch Hill Pond,
Hampstead Heath" Fonte: The
Artchive |
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Em meio à ebulição de fins do "longo século XVIII" os
artistas pela primeira vez puderam realmente optar ou por criar
paisagens poéticas ou se ater aos fatos da natureza. E por mais
que nosso gosto contemporâneo tenda a considerar menor a criação
de todo o período que abordamos, uma coisa é clara: o século XVIII
é mais que apenas uma transição cronológica para o XIX, é o século
no qual a razão cozinhou todos os ingredientes que derrubariam definitivamente
os "muros" que cercavam a paisagem.
REFERÊNCIAS
CLARK, Kenneth.
Paisagem na arte. [2ed]. Lisboa: Ulisseia,
[1949].
GOMBRICH, E. H.
A história da arte. 16ed. Rio de Janeiro:
LTC, [1999]. p. 413-497. [Capítulos 20 a 24].
LEITURA COMPLEMENTAR
SCHAMA, Simon.
Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.