Artistas

Dona Pretinha

A Mestra Dona Pretinha, da cidade de Itaobim, é uma senhora miúda e centenária, mas tão ativa quanto seus jovens aprendizes. Em seus 106 anos ela já ensinou muita gente no Vale a fazer esteira e deixou sua marca na história da cultura regional.

Entrevista

Entrevistada: Maria Gomes Dias

106 anos

 

Como tudo começou?

Dona Pretinha: Quando começou, primeiro de tudo, veio Leda.[1] Ela foi lá no posto e fez a proposta das caixas, pra ver como é que a taboa ia dá, que rendimento que ia ter na taboa a não ser esteira. Nós foi e concordou. Um bocado disse que não ia fazer o serviço porque sabia que os filhos ia morrer de fome. Foi eu e Gilson e um bocado aí. Nós falou: vamos ver o que a taboa vai dar. Veio o mestre pra ensinar, nós continuou na casa de Gilson fazendo. Depois nós começou fazer as caixa, das caixa foi aumentando… Com pouco fez mesa, com pouco foi fazendo mais, foi bancos… Tinha mês que nós ia só quatro, mas fez. E então nós seguiu a carreira das caixas. Com isso, comunidade reuniu e teve ideias, um bocado de gente foi aprendendo e veio gente de fora pra ensinar, pra falar. Aí nós continuou e continuando nós tamo.

 

Quais as dificuldades no processo de produção do artesanato?

Dona Pretinha: A dificuldade é pagar alguém pra cortar e também um carro pra trazer a taboa. Que é muito difícil. Porque eu num ‘guento mais cortar a taboa, então tem que pagar pra trazer.

Gilson: Quando nós começamos, nós trabalhava com um carro da prefeitura. Tirava a taboa e a prefeitura que trazia, mas hoje não tem mais o caminhão da prefeitura. Tem que pagar um particular pra trazer.

 

Taboa vem da onde aqui? E da cidade mesmo?

Gilson: É da cidade mesmo. Antes tirava de um taboal aqui de cima. A gente tirava dali e trazia a taboa. Pra fazer esteira, era taboa dura. Já pra trançar artesanato, a gente depende de um outro tipo de taboa, mais macia, que é a taboa mole. Essas corda aí e tudo, a gente depende da taboa mole. Pra isso, a gente tem que tirar ali na cidade, do outro lado, pra fazer esse trançado aí. Pra esteira a gente tira ali mesmo. [...]

 

O que significa produzir artesanato para sua vida?

Dona Pretinha: Minha filha, trabalho numa vida cansada, porque a idade já tá muito vencida, trabalho porque tenho que cuidar do meu ranchinho e cuidar das caixas, eu não tenho quem me dá as coisas a não ser Deus. Então para mim é dificuldade, mas fazer o quê? Cumprir com o dever que Deus marca e fazer assim mesmo, mas que é duro pra mim, é.

 

É difícil mas ajuda, né?

Dona Pretinha: Ajuda. Quando acha alguém que compra já dá pra comprar uma saquinha de sal, dá pra comprar um quilo de açúcar. Vai vivendo por aí…

 

Vende muito artesanato?

Dona Pretinha: Quando vem pedido de fora vende mais assim um pouco.

 

Qual é o lugar que vocês mais vendem aqui, é pra fora ou vocês também vendem em feiras, dentro da cidade?

Dona Pretinha: Eu mesmo num vendo em feira não. A feira que nos vendia quantidade é cá pro lado de BH.

Gilson: A feira que a gente tem assim melhor saída é a feira da UFMG, do mês de maio. Essas outras feiras que a gente participa são feiras mais pequenas, vende pouquinho…

Dona Pretinha: … quase não dá renda

Gilson: Também vendemos bastante na feira do mês de novembro, no Expominas.

 

Em relação a esse cuidado de passar isso pra outras pessoas fazerem artesanato, a senhora já passou? Tem ideia de quantas pessoas ensinou?

Dona Pretinha: já ensinei, aqui mesmo, que eu nunca saí pra fora, pra fazer fora não. Sempre gente daqui mesmo do lugar. Ensinei um bocado a aprender também, pra ajudar a gente nas caixa quando tem um pedido. Eu não calculo quanto. Nunca teve a condição de eu ir fora não.

Gilson: Todo mundo que tem interesse e chega lá, procura ela pra ensinar, ela ensina.

 

As pessoas da comunidade têm interesse em produzir artesanato? A juventude?

Dona Pretinha: Eles não interessam muito não. Interessa mais aqueles que conhecem o serviço. Mas por fora, eles num querem empatar com as taboas. Um bocado interessa e outro já não interessa.

Gilson: Os que vêm aqui e têm o interesse de fazer o artesanato é mais aqueles parentes de artesão, filho de artesão, que conhece o ofício, procura aprender o oficio. Que vai colocar em prática lá mais adiante.

 

Dar para viver apenas com o artesanato?

Gilson: Não, é mais um complemento familiar. Tia Maria, por exemplo, ela vive da aposentadoria dela e o artesanato que ela faz, ela vende pra ajudar ela a comprar outras coisas que ela precisa.

Dona Pretinha: Remédios, porque quando eu não tenho o remédio no posto, eu tenho que comprar na farmácia – como agora mesmo eu tenho de comprar duas qualidade de remédio pra mim porque no posto não tem.

 

O que considera a maior dificuldade a ser enfrentada?

Dona Pretinha: A maior dificuldade é essa mesmo: é mexer com as taboas aqui. Eu não trabalho na roça que eu num ‘guento mais, vou mexendo com as taboas aqui. É fazer as caixinha mesmo. E é o lugar de vender.

Gilson: eu acredito que, no caso, a maior dificuldade pra todos nós aqui é levar o artesanato e achar o lugar de vender. Nem sempre tem pessoas que têm condição de sair com os produtos e vender lá fora, porque lá não tem o lugar de vender. Onde a gente acha um espaço para gente poder trabalhar é quando eles convidam a gente pra feira. Aí tem um lugarzinho lá. Dificuldade da gente é a divulgação dos produto da gente lá fora.

 

Qual a importância de repassar o ofício?

Dona Pretinha: Eles aprendendo também ajuda a gente. Quando necessita ganhar um trocadinho, aqueles que têm cabeça aprende logo. Mas não dá para falar que dá para nós ganhar muito dinheiro, porque num ganha nada…

Gilson: Hoje, com esses programas, por exemplo igual tem ali o PET, fica mais difícil da gente tá ensinando as crianças a trabalhar porque eles vão tá tratando como trabalho infantil. Tem que ser um gosto deles mesmo: “eu quero aprender!”. Os que chegam a aprender é os que querem aprender mesmo. Porque a gente não pode chamar os menino e falar: “Cês quer aprender fazer o artesanato?”, que eles acham que tá colocando pra trabalhar e que tá sendo exploração.

Dona Pretinha: E outra: já tem a escola também, senão o menino preocupa com a caixa e esquece do estudo, né? Então tem que deixar na vontade deles seguir nas duas carreiras.

Gilson: Mas a gente tem hora que ajunta aquele tanto de criança aprendendo, um incentiva o outro, outro incentiva o outro. Um tá fazendo, outro quer fazer também, tem a curiosidade de fazer também. Aí junta aquele tanto fazendo.

 

Qual é a sua data de nascimento e o nome completo. A senhora sabe de cor?

Dona Pretinha: de cor eu só sei, que eu nasci, minha mãe falava, 5 de dezembro, mas agora o ano eu não sei.

 

Aí o nome completo é?

Dona Pretinha: Maria Gomes Dias.

 

Gostaria que senhora contasse um pouco da sua história.

Dona Pretinha: Trabalhava na roça cortando com foice e machado. Botava a gente na escola, mas eu mesmo não aprendi nada porque na hora que a gente sabia que era pra estudar, os pais chegava e falava: “Ah, eu não aprendi estudo e tô vivendo, vocês quer aprender estudo pra sem-vergonhice.” Então vão pra roça, e nós saía pra roça. Eu era mais chegada no machado, toda vida. Juntava eu, um irmão que mora ali e outro que faleceu, nós trabalhava de dois. Cada um de dois num pau só. Dois de um lado e dois de outro, alargando. Tudo em pé. Aí papai mais um. Fazia roça era assim: “Vamo trabalhar de mutirão, vamo abrir boca no pau”. Ali quando fazia a roça, que cortava a cabeceira todinha, nós pegava naqueles pau mais grosso, cortava e derrubava os pau. E os pau saía trombando nos outros. Ali ficava a roça feita. A vida era dura, a vida de antigamente não era mole não.

 

Quantos irmãos você teve?

Dona Pretinha: Eu que sou a mais velha deles tudo. Depois, teve outra que faleceu. Depois teve outro… mas já faleceu tudo. Só tem vivo eu e um. Só nos dois, que o resto já faleceu tudo. Nós era 10. Uns morreu pequeno, outros pai de família.

 

A senhora tá com quantos anos?

Dona Pretinha: 106 completo. Vou fazer 107 no dia 5 de dezembro. Todo mundo diz que nem crê. 9 irmão e olha que eu sou a mais velha deles tudo. O do meio é esse que mora ali, que é o pai do Gilson. A gente tem de levar a vida e esquecer de idade, não põe idade na cabeça não, num fala: “Ah, eu tô velha, eu não aguento mais fazer nada, essa idade já não vou aguentar”. Você sabe que é melhor eu trabalhar que pedir. Fazer as coisas para ganhar. E cê põe isso na cabeça, cê mexe com uma coisa, cê mexe com outra e vai vivendo. Hoje mesmo era pra eu ir no posto, eu não fui. Tenho que medir o diabete, mas se eu for olhar o diabete, fica como? Falo que eu tô ruim e vou ficar mais ruim. E mais ruim acaba a vida. A gente tem de morar na cabeça, pular, dar coice pra tudo, e falar: “quem tem que dar conta é eu, porque Deus deixou para eu dar conta”. E a idade vai passando. Ah, eles falam: “Por que você não enverga? Quantos velhinhos envergadinho!” É porque eles é mole. Aqui não, mas quando eu morava em BH, eu subia em riba de uma cama, eu caia de uma vez. Os médicos de lá ensinava como é que eu fazia com a minha idade, era pra fazer um exercício… e até hoje eu faço. Quando fui morar em Belo Horizonte, eu já fui com a idade avançada. Meu esposo era doente e, então, quando ele arruinava, tinha de ir pra lá, pra tratar. Nós morava lá em Ribeirão das Neves.

 

Com quantos anos casou?

Dona Pretinha: Eu num sei idade. Quando eu casei, já tinha idade, que de primeiro num casava moça muito nova. Os pai tinha mania de dizer que tinha que deixar a idade de modo a garantir a casa, a palavra. Antes, pra casar, tinha de ajudar primeiro. Já casei na idade avançada.

 

Quantos filhos você teve?

Dona Pretinha: seis. Três é morto, três é vivo.

 

Mora em Itaobim?

Dona Pretinha: Morava tudo em BH. Aí depois uma mudou pra São Paulo. Eu tenho uma em Brasília. Mora tudo fora. Nem escrever para mim eles num escrevem. Também não me importo não. Já tá tudo criado, cada um tem seus filho, estudando, tudo se virando. Os filho que têm dó me ajudam.

 

Mora sozinha?

Dona Pretinha: Mora eu, um menino rapazinho e uma menina que já tá mocinha. São dois. São neto. É sobrinho, mas tudo me tem como vó, porque nasceu e criou dentro da minha casa.

 

Na infância a senhora já trabalhava com esteira?

Dona Pretinha: Já, desde pequena. Nós trabalhava de dia; e, de noite, ia amarrar esteira. Quando o dia amanhecia, nós tava com quê? Já tava com uma dúzia de esteira cada uma. Dormia um soninho de nada, acordava cedo pra mexer com a roça e, antes de mexer com a roça, nós já tinha de ir banhar o rosto no córrego, levando as vasilhas pra lavar. Era pote, porque num existia nada, num tinha vasilha não. Era aqueles potão de barro, pesado, a gente já ia pra encher. Mandava homem e mulher, cada um tinha que levar a água pra deixar pra mãe da gente fazer a comida. Num sabia vender nada, o que fazia era pra dar! Trabalhava na roça e nós foi aprender a vender as coisa no departamento. No departamento, nós aprendemos a vender porque os que vieram, quando vieram de fora pra vender aí na estrada, então ensinou.

Gilson: Antes dela fazer esteira, tirava lenha pra vender na feira. Depois, passou a fazer esteira de taboa pra vender na feira.

Dona Pretinha: Fazia esteira até de palha de banana.

Gilson: Vendia pra tirar o sustento da família, que era o serviço que tinha antigamente. Era fazer a roça e vender esteira na feira para tirar o da alimentação. Vendia de taboa, né? Aí, com o passar do tempo, a gente adquiriu família e espelhou neles, porque eles vivia trabalhando e, graças a Deus, não passava fome porque trabalhava com o artesanato, plantava roça e sempre tinha as coisa dentro de casa. Então a gente achou um meio de levar adiante o artesanato, porque a gente achava muito bonito aquilo que eles fazia e, depois já na época da gente, tinha apoio dos governante. Eles antes num tinha, mas a gente já chegou a ter o apoio, oficina de empreendedor artesanal, de associativismo. Eles ensinaram a gente a como trabalhar lá nas feiras, como divulgar o produto da gente e tudo. E a gente foi tendo mais oportunidade. A gente vendia o produto da gente e já levava os deles também, que já sabia fazer, foi ensinado pra eles. Levava o produto de todo mundo pra feira. E até hoje estamos nessa luta aí. Quando chega mais pessoas precisando de fazer artesanato, a gente ensina e leva os artesanato deles também. É um ajudando os outros. Hoje, por exemplo, tem pessoas que nem tá trabalhando junto com a gente, tá trabalhando lá pra outros cantos, mas eles sabem fazer o artesanato. Igual umas mulher daqui mesmo que foi morar lá pro Rio de janeiro, fazendo a mesma esteira de palha. Era artesã como a gente aqui e hoje tão lá. Estão fazendo artesanato e vendendo lá. Estão lá no Rio. Elas aprenderam aqui na associação e foram embora pra lá e lá amarram esteira pra vender, que lá tem facilidade de vender. Lá em são Paulo compram muita esteira, então eles aproveitam pra fazer lá e já vendem por lá mesmo, que conseguem preço melhor.



[1] Dona Pretinha refere-se a Leda…, funcionária da Emater.

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Ofícios :
Mestra Maria Pretinha – trançadeira de taboa em Itaobim (MG) – vídeo curto