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Nº 1451 - Ano 30 - 26.8.2004

 

O elo perdido

Experiência do projeto Minas Afro-descendente comprova o poder da língua em unir culturas separadas pela escravidão

Maurício Guilherme Silva Jr.



Foto:
Marcílio Lana



exta-feira, 13 de agosto. Quase lua nova em Bom Despacho, município do oeste mineiro. Em sua pequena casa na Tabatinga, bairro tradicional da cidade, dona Maria Joaquina da Silva, a Fiota, prepara-se para dormir. Tudo corre em sua aparente normalidade cotidiana, até que a noite proporciona-lhe um surpreendente encontro. Por volta das 21 horas, a moradora recebe três ilustres visitantes, com quem a mera troca de palavras faz com que dona Fiota reavive séculos da história de seus antepassados.


Remanescente de uma das duas famílias* de Bom Despacho detentoras da tradição lingüístico-cultural africana, Maria Joaquina conversou com seu Crispim e seu Ivo, cantadores de vissungos _ cantos afro-brasileiros _ de Milho Verde, e com o estudante angolano da UFMG, Amadeu Chitacumula. Depois de se cumprimentarem em português, dona Fiota pronunciou frases no dialeto que aprendera com a mãe: a língua do Negro da Costa ou da Tabatinga.

A cada expressão ou palavra dita pela anfitriã, seus convidados não disfarçavam a emoção. Apesar de nascidos em terras distantes da pequena Bom Despacho, Ivo, Crispim e o jovem estudante angolano entendiam tudo o que dona Fiota dizia. Enquanto os cantadores sorriam surpresos, Amadeu Chitacumula traduzia etmologicamente a origem das expressões de Maria Joaquina e comparava determinadas pronúncias com dois dos dialetos angolanos: o quimbundo e o umbundo.

O encontro dos representantes da cultura afro-brasileira aconteceu em Bom Despacho por causa do evento Minas afro-descendente - Uma experiência de revitalização de remanescentes de línguas africanas em Minas Gerais, fruto de projeto da Faculdade de Letras da UFMG, coordenado pela professora Sônia Queiroz (leia entrevista ao lado), que busca revitalizar as línguas africanas faladas no Brasil. No dia seguinte ao encontro de dona Fiota com seus novos amigos, a cidade mineira seria palco de uma série de atividades artísticas e folclóricas

Origens

A língua da Tabatinga, que Dona Fiota apresentou a seus visitantes, mistura o português rural do Brasil-Colônia a línguas de grupos Banto – com predomínio do quimbundo e do umbundo –, faladas até hoje em Angola. Segundo a professora Sônia Queiroz, a formação de dialetos em solo brasileiro resulta da necessidade de sobrevivência dos escravos. À época, os senhores misturavam, propositadamente, nas senzalas, negros vindos de pontos diferentes da África. Como não conseguiam se comunicar, precisaram desenvolver um dialeto próprio, que lhes servia de instrumento para o diálogo e, ao mesmo tempo, de afronta aos patrões brancos.


Com relação ao surgimento da língua falada por clãs afro-brasileiros de Bom Despacho, a professora Sônia Queiroz, no livro Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga, remete ao ciclo da mineração. Segundo ela, os escravos que ali chegaram teriam vindo de Pitangui, uma das vilas do ouro, bem mais antiga que Bom Despacho. “Quando as minas de Pitangui começam a escassear, os habitantes da região migram para outras áreas do oeste mineiro. O processo culmina com o desenvolvimento de fazendas de gado, onde trabalhavam os negros que formaram as famílias da Tabatinga”, explica a pesquisadora. Quando passam a realizar serviços domésticos no interior da casa de seus senhores, os escravos agregam estruturas do português à língua criada nas senzalas.

* Em 1981, havia em Bom Despacho 207 falantes da chamada Língua do Negro da Costa _ ou Língua da Tabatinga _ pertencentes a duas famílias do município. Passados mais de 20 anos, a professora Sônia Queiróz identificou em suas pesquisas apenas duas mulheres da comunidade. Delas, apenas Maria Joaquina da Silva fala a língua afro-brasileira. O idioma é composto por um português rural do Brasil-Colônia e por línguas do grupo Banto, com predomínio do quimbundo e umbundo, faladas até hoje em Angola.

Minha pátria é minha língua

Realizado no adro da capela da Cruz do Monte, no dia 14 de agosto, na comunidade da Tabatinga, o evento Minas Afro-descendente buscou reforçar a identidade dos afro-descendentes que vivem em Minas Gerais, por meio do reconhecimento do valor de suas tradições lingüísticas e culturais. Pretendeu, ainda, valorizar a mistura de etnias – raças, cores, línguas, estilos de vida – que caracteriza a riqueza da cultura rasileira.
O evento reuniu diversas vertentes afro-brasileiras. Logo às 10 horas, dezenas de moradores assistiram à chegada dos ternos do reinado de Nossa Senhora do Rosário, grupos compostos por homens e mulheres devidamente paramentados com cores de sua comunidade, que dançam ao ritmo de tambores, sanfonas, e seguram bandeiras com homenagens aos santos de devoção.

Em seguida à passagem dos ternos, o estudante Amadeu Chitacumula e outros quatro estudantes angolanos da UFMG mostraram aos participantes a força da musicalidade africana. Integrantes do grupo Dikanza – termo que, em quimbundo, é representativo de instrumentos musicais –, eles apresentaram, à capela, canções de sua terra natal. Vindos de diversas partes de Angola, Chitacumula e seus companheiros estão há alguns anos longe de seu país. O português é a língua oficial dos estudantes, mas são os dialetos que denunciam sua origem, num processo que pode ser resumido pela expressão Ofexa yange elimi liange, (Minha pátria é minha língua).

Outra atração do evento foi o grupo belo-horizontino Tambolelê, que apresentou, ao lado dos cantadores de vissungos de Milho Verde, o espetáculo Macuco Canengue. “Foi uma honra nos apresentarmos ao lado de dois mestres. Afinal, há anos trabalhamos com a difusão da cultura afro-mineira”, diz o músico Sérgio Pererê, um dos integrantes do Tambolelê. Seu Ivo e seu Crispim explicam que os vissungos são cantos entoados pelos negros durante a lida diária e nos cortejos fúnebres. “Quando morre uma pessoa, rezamos o ofício e entoamos cantos sagrados”, afirma seu Crispim. Atualmente, a tradição foi deixada de lado na região em que moram nas proximidades de Diamantina. A expressão artística do canto, no entanto, permanece viva.