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Nº 1459 - Ano 31 - 21.10.2004

 

 

A lei de biossegurança
e o uso de células-tronco embrionárias

Fabrício Rodrigues dos Santos*

o dia 6 de outubro de 2004, foi aprovado um substitutivo ao Projeto de Lei de Biossegurança no Senado. O substitutivo altera alguns pontos aprovados, em março, na Câmara, para onde retornará para possíveis alterações e aprovação final pelo Congresso. Este único projeto de lei da Câmara (nº 9, de 2004) pretende estabelecer normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados (OGMs) e seus derivados; cria o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio); e dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança (PNB). O projeto também regula o uso das células-tronco.

Em um único projeto de lei são discutidos pontos com competências decisórias completamente distintas. A biossegurança relacionada aos OGMs (ou transgênicos) vale-se de ponderações técnicas, políticas, científicas, econômicas, médicas e ambientais para decidir sobre a sua pesquisa e produção agrícola. A biossegurança associada às células tronco-embrionárias, além de vários dos aspectos acima mencionados, também se vale de ponderações éticas para as decisões que podem autorizar seu uso na pesquisa e na aplicação terapêutica. No entanto, no estágio atual e avançado das discussões seria muito difícil separar estas duas questões que foram agregadas por razões políticas.

Como cientista, mas também como cidadão dotado de valores morais, vejo vários prós e contras no uso de células-tronco embrionárias (aquelas que estão sob questionamento ético) na pesquisa e aplicação terapêuticas. Cientificamente, o uso de células-tronco embrionárias seria importante e poderia facilitar o avanço de novas terapias. No entanto, grande parte do que poderá ser feito também o será provavelmente num futuro próximo (relacionado à pesquisa com as tronco-embrionárias) com o uso de células-tronco somáticas, isto é, derivadas de indivíduos, não de embriões. Na verdade, há até vantagens no uso de células-tronco somáticas (para as quais não há problemas éticos em nosso país), pois se forem derivadas do mesmo indivíduo submetido a este tipo de terapia, não haverá qualquer tipo de rejeição tal como nos transplantes ou no uso de células-tronco embrionárias.

Mas, atualmente, células-tronco embrionárias são mais facilmente manipuláveis em laboratório e há um precedente legislativo incontestável para seu uso, uma lei que autoriza a geração e armazenamento, nas clínicas de fertilidade, de vários embriões, que se não forem implantados em um útero não irão gerar indivíduos adultos.

Por que não foi discutida previamente a lei que autorizava a geração destes inúmeros embriões, que inevitavelmente perecerão nos laboratórios de fertilidade? Na época, os laboratórios se comprometeram a manter tais embriões congelados até que fosse possível sua reimplantação no útero ou até que um acidente ou descuido provocasse o descongelamento e a morte deles, embora tal circunstância não fosse enfaticamente mencionada. É importante frisar que todos estes embriões foram frutos de fusões entre espermatozóide e óvulo, da forma como todos nós fomos concebidos. Alguns cientistas afirmam que isto não seria "vida", que não há "consciência"...

Estas são apenas opiniões que refletem valores morais dos pesquisadores. Na minha opinião pessoal e científica, a vida surge na concepção, não quando nossos órgãos vitais se formaram, ainda na gestação, ou quando tomamos consciência de nossa existência, já com alguns anos de idade. Usando um argumento científico, diria que várias espécies de animais existem na natureza, por vários meses ou anos, somente na forma de embriões. Ou será que elas ficam "extintas" neste período embrionário, já que não são indivíduos adultos?

No último texto do projeto, foi mantida a exclusão do uso da clonagem terapêutica que teria como objetivo gerar embriões clones dos indivíduos adultos, que não seriam resultados da fusão espermatozóide-óvulo. A vantagem destes "embriões", se é que podem ser assim chamados, seria a de gerar rapidamente células-tronco embrionárias (clonadas) do próprio indivíduo a ser tratado, o que facilitaria o uso da terapia por evitar problemas de rejeição, a exemplo do que ocorre com as células-tronco somáticas. Por que aprovar o uso de embriões concebidos por fusões de gametas e não fazer o mesmo com a utilização de um embrião artificial, clone de um indivíduo adulto? Na minha opinião, há menos problemas éticos associados à clonagem terapêutica, já que os embriões gerados dessa forma não são "novos" indivíduos potenciais, como os de clínicas de fertilidade.

Estes embriões, caso reimplantados (clonagem reprodutiva), gerariam um clone produzido artificialmente, o que está proibido nesta lei. Anos atrás, an- glicanos e católicos consideraram um genocídio a decisão do governo britânico de destruir seis mil embriões congelados. O verdadeiro genocídio já havia sido anunciado com a autorização da geração destes embriões em grande número nas clínicas de fertilidade. Agora eles terão algum "uso", que, para alguns, é melhor do que perecer nas clínicas. Para isso, porém, necessitarão da autorização dos genitores. E aí fica a dúvida: o leitor autorizaria experimentos com os embriões concebidos na clínica de fertilidade, sendo que cada embrião é uma combinação única de seus espermatozóides e óvulos, um potencial "irmão" de seus filhos?

* Professor de Genética e Evolução do departamento de Biologia Geral, do ICB


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