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Nº 1625 - Ano 34
12.09.2008

Cem anos depois

Pesquisa abre perspectiva para reverter danos provocados
pela Doença de Chagas na fase crônica

Ana Maria Vieira

Efeitos do parasitismo em células cardíacas afetadas pela Doença de Chagas foram revertidos, de modo inédito, em experimento realizado na UFMG. O trabalho, iniciado há dois anos, envolveu o mapeamento em tempo real da atividade elétrica de células do ventrículo esquerdo de corações de camundongos infectados pelo protozoário Trypanosoma cruzi, indutor da patologia, que atinge pelo menos oito milhões de pessoas no Brasil. A doença foi descrita em 1909 pelo pesquisador brasileiro Carlos Chagas.

Filipe Chaves
medico
Hugo Duarte: novo protocolo experimental

A técnica de monitoramento utilizada no estudo, conhecida como Patch Clamp, é de alta complexidade. Por meio dela, os pesquisadores puderam, pela primeira vez, visualizar e correlacionar modificações ocorridas na célula cardíaca parasitada com o funcionamento dos canais iônicos. Essas estruturas, associadas ao fenômeno bioelétrico, são responsáveis pela função contrátil da célula cardíaca.

“Os maiores avanços foram obtidos na compreensão do funcionamento dos canais para o íon cálcio e o efeito do óxido nítrico neste tipo de proteína. Quando as células foram tratadas com inibidores específicos da cascata bioquímica de síntese do óxido nítrico, os efeitos provocados pelo parasitismo foram revertidos completamente”, relata o pesquisador Hugo Leonardo Duarte, aluno de doutorado do ICB e um dos responsáveis pela investigação.

Devido à inexistência de tratamento eficaz para a fase crônica da doença, as evidências apontadas pelo estudo são consideradas promissoras. De acordo com o doutorando, as pesquisas podem levar a uma nova terapêutica farmacológica para pacientes chagásicos, cujo alvo principal seja o controle dos níveis de óxido nítrico. A estratégia impediria ou reverteria as alterações cardíacas responsáveis pela mortalidade na fase crônica. O trabalho é coordenado pelo professor Jáder dos Santos Cruz e envolve ainda a pesquisa de mestrado de Danilo Roman Campos, ambos do ICB.

“Os primeiros resultados impressionaram a equipe pelo paralelismo com os dados macroscópicos obtidos há décadas em experimentos com corações de animais com Doença de Chagas. Conseguimos esclarecer o que antes era só especulação”, diz Hugo Duarte, citando efeitos como a redução da atividade contrátil do coração, a dilatação do órgão e outras deficiências resultantes de modificações do comportamento elétrico dos cardiomiócitos.

Segundo Duarte, o sucesso do trabalho foi possível depois que o Laboratório de Membranas Excitáveis do ICB adotou protocolos específicos e adquiriu equipamentos que o tornaram competitivo na área de eletrofisiologia cardiovascular. A UFMG, diz ele, ocupa a liderança nacional no que diz respeito à obtenção e medidas eletrofisiológicas nas células cardíacas por meio da técnica de Patch Clamp. O novo protocolo experimental permitiu conhecer o funcionamento dos canais iônicos em tempo real.

Etapas

O processo envolveu, num primeiro momento, a retirada do coração de camundongos infectados. Na segunda etapa, foram isoladas as células cardíacas, os cardiomiócitos. Durante seis horas, elas foram mantidas “vivas” em um meio de cultura. Os pesquisadores analisaram, então, a atividade elétrica de apenas uma delas na fase aguda – quando o parasita se encontra sobretudo no sangue circulante e provoca alta mortalidade – e na etapa crônica da patologia. Nesta, embora a incidência do protozoário no sangue seja menor que na fase aguda, os danos causados ao coração são maiores, como a cardiomiopatia dilatada e a insuficiência cardíaca.

O estudo identificou que o parasitismo provoca, entre outros efeitos, modificações em componentes moleculares das células cardíacas, como a elevação dos níveis de óxido nítrico, que afeta o comportamento elétrico dos cardiomiócitos, promovendo a redução de sua capacidade contrátil.
O doutorado de Hugo Leonardo Duarte será finalizado em dois anos, mas os resultados já obtidos renderam duas distinções a ele e ao pesquisador Danilo Roman Campos: o Prêmio Roberto Alcântara Gomes, da Sociedade Brasileira de Biofísica, e uma menção honrosa na Reunião Anual das Federações de Biologia Experimental. O trabalho conta com parceria da Fiocruz e da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e financiamento do CNPq e da Fapemig.

A técnica

Canais iônicos são proteínas que atravessam a membrana das células cardíacas, formando poros que, quando abertos, põem em comunicação os meios extracelular e intracelular e permitem o trânsito dos íons sódio, cálcio, potássio e cloreto. “Eles se encontram dissolvidos em concentrações diferentes nesses dois meios e seu movimento, ou cargas elétricas, nos canais é medido pela técnica Patch Clamp”, revela Hugo Duarte. A partir do mapeamento realizado nas duas fases da doença, os pesquisadores conseguiram correlacionar a maior presença do óxido nítrico decorrente do parasitismo a alterações sofridas no funcionamento dos canais, ou seja, à atividade elétrica das células.

“Modificações elétricas e contráteis observadas na fase aguda perduravam até a fase crônica. Estas alterações eram irreversíveis e mostravam uma perda da função contrátil relacionada a uma menor atividade desses canais iônicos nas células parasitadas”, conclui Duarte. Os estudos, até o momento feitos in vitro, começam agora a ser realizados em modelos animais. Os testes clínicos, já em avaliação, deverão ocorrer no Hospital das Clínicas da UFMG.