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Nº 1648 - Ano 35
13.4.2009

opiniao

Universidade e pesquisa:
mal-estar (do) acadêmico

Maria Cristina Soares de Gouvêa *

Em artigo na coluna Opinião do BOLETIM, intitulado Agitação estéril (edição 1.644, de 16.03.2009), o professor Ivan Domingues analisa tema que tem ocupado e preocupado cada vez mais a comunidade acadêmica brasileira: nossas práticas, sujeitas a dispositivos avaliativos indutores de um produtivismo, muitas vezes estéril.

Como participante da vida acadêmica desta Instituição desde o início da década de 80, na graduação, percebo que, por um lado, é visível a profissionalização da Universidade. Àquela época, pesquisa e produção científica eram desconhecidas de grande parte dos alunos de graduação – e até de docentes. Hoje, a pesquisa é parte integrante da vida acadêmica, sendo mesmo sua dimensão mais valorizada.

Por outro lado, a relação com o saber era diferenciada, marcada por uma prática “desinteressada” (com todas as aspas possíveis). Por exemplo, na Fafich, onde estudei, houve palestras de convidados como Foucault e Castoriadis, que fizeram história no prédio do bairro Santo Antônio; ou cursos de professores como Sonia Viegas, Padre Vaz, Célio Garcia, entre outros, que, muitas vezes, não deixaram obras escritas, mas marcaram a formação de várias gerações; ou conversas sobre o livro que acabara de sair ou outro que alguém trazia debaixo do braço, cuja leitura era partilhada no “murinho”, ou no Bar do Gordo, regada a cerveja ainda não proibida. Vivia-se uma agitação romântica e muitas vezes ingênua, mas não estéril.

Muitos dos alunos daquela época tornaram-se pesquisadores de destaque. Participam não apenas da produção, nos programas de pós-graduação, mas também da gestão, em comitês dos órgãos financiadores e avaliadores da ciência brasileira. E é entre esses docentes que se observa um mal-estar crescente. Beirando os 50 anos, cada vez mais ouço meus colegas (eu me incluo nesse grupo) falarem do desejo da aposentadoria, não por não se sentirem realizados, não gostarem, ou por serem malsucedidos na vida acadêmica, mas por um sentimento de cansaço pelo excesso de responsabilidade e pelo caráter burocrático e repetitivo da prática científica.

Os progressos são inegáveis, mas precisamos avançar agora em outra direção. Se a participação na produção do conhecimento tornou-se mais democrática, o que certamente é positivo, a repetição de congressos e a publicação pulverizada e exagerada de artigos, como aponta Ivan Domingues, fizeram com que a produção perdesse muito do vigor.

Preocupa-me especialmente o nosso lugar como formadores de novas gerações de pesquisadores. Temos o registro da vivência de uma Universidade no passado que nos faz desnaturalizar a feição atual da vida acadêmica e desconfiar do efeito de certas práticas. Já nossos alunos e orientandos construíram uma relação com o conhecimento mediada pela leitura de artigos, ou trechos de livros, muitas vezes sem nunca terem mergulhado na experiência formativa da leitura integral do que chamamos de clássico. Sem falar na participação ritualizada em congressos em que ninguém ouve ninguém, mas cada um apresenta seu paper em 15 minutos, à espera do certificado que irá sofregamente registrar no Lattes.

Diante deste quadro, como parte da comunidade acadêmica, vejo-me entre duas posições. Por um lado, como personagem foucaultiano, sujeito a dispositivos avaliativos que informam minhas práticas e parecem fugir a meu controle. Por outro, sou ator social, participante do funcionamento e legitimação de tais dispositivos, sobre os quais cabe refletir e intervir.

Nesse sentido, acredito que devemos superar uma crítica genérica, que desconsidere as conquistas, e apontar questões que merecem ser melhor consideradas. Por exemplo, cabe-nos debruçar sobre os dispositivos de avaliação que vêm se firmando como diretrizes da produção científica. Sendo ainda mais específica, no caso da pós-graduação (locus maior da pesquisa brasileira), julgo um retrocesso que a Capes tenha definido que, na avaliação da qualidade dos programas, sejam igualados os itens referentes à produção discente e docente (35% cada um, em relação ao peso total da avaliação). São produções de natureza e qualidade diferenciadas, o que reforçará a cultura da publicação e participação em eventos, mesmo que o trabalho esteja ainda incipiente, ampliando mais ainda a massa de “produtos”, sem que signifique avanço do conhecimento.
Cabe, também, investir na produção de referenciais que rompam com uma perspectiva estritamente quantitativa e confiram visibilidade à qualidade da produção. Especialmente no caso dos programas de pós-graduação 6 e 7, em que importa avaliar que contribuição trazem para o avanço do conhecimento na área.

Por fim, temos que criar condições para que os pesquisadores mais experientes possam investir numa produção qualificada. O exemplo do Ieat/UFMG, em que os docentes concorrem ao afastamento por um ano das demais atividades da Instituição para investirem estritamente na pesquisa, parece-me um modelo a ser considerado.

Tenho, enfim, uma visão relativamente otimista. Acredito e gosto do que faço, e concluo tomando de empréstimo a citação de Paul Ricoeur, trazida por minha ex-orientadora, Eliane Marta Teixeira Lopes:

O que faço quando ensino? Eu falo. Eu não tenho outro ganha-pão e não tenho outra dignidade; eu não tenho outra maneira de transformar o mundo e não tenho outra influência sobre os homens. A palavra é meu trabalho; a palavra é meu reino. Meu ofício e minha honra.

* Professora associada da Faculdade de Educação

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