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Nº 1657 - Ano 35
15.6.2009

O país que está nos discos

Pesquisa analisa a imagem do Brasil construída pela música popular

Priscila Brito

Clássicos como Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, são chaves para compreender o Brasil. Mas há outras formas de mergulhar na identidade nacional sem ter que necessariamente ‘devorar’ essas obras. Uma escuta atenta do que toca no rádio é uma delas. Foi o que fez o pesquisador Daniel Gouveia de Mello Martins em sua dissertação de mestrado em sociologia. Ele analisou letras de 165 músicas executadas nas rádios brasileiras entre os anos de 1956 e 2005 com o objetivo de desvendar a imagem que elas construíam do Brasil.

Muito além de duas visões opostas que se tem do país – o ufanismo de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e o pessimismo de Que país é este?, da Legião Urbana –, a amostra selecionada revela que as composições feitas ao longo de 50 anos abordaram transformações e problemas enfrentados pelo Brasil no período.

As questões tratadas nas letras se concentram em cinco temáticas identificadas pelo pesquisador: urbana, étnico-racial, gênero e sexualidade, religiosa e política. No primeiro grupo, Daniel Gouveia destaca a recorrência de músicas sobre a favela, tanto na linha da exaltação quanto de denúncias. A diferença, ressalta, é que as músicas com o segundo viés tardaram a surgir. “O morro era cantando no início por quem não era de lá, como a bossa nova. Era uma coisa mítica. A partir do momento em que ele é visto de dentro para fora, com os sambistas e o rap, é que aparece uma imagem mais real daquele ambiente”, argumenta.

A temática étnico-racial envolve duas abordagens. Mestiçagem e negritude disputam a inspiração dos compositores, deixando à mostra, na opinião do pesquisador, a dificuldade do país em lidar com a questão racial: “Na amostra inteira há músicas falando do país mestiço. Só que o mestiço é a mistura de tudo, o que acaba com as singularidades. Por isso, paralelamente, tem a valorização do negro”, afirma. Mas Daniel alerta que o discurso de valorização do negro nem sempre foi o mesmo. Do viés sexual dos primeiros sambas, que falavam da “mulata assanhada” (Ataulfo Alves), as músicas passaram a exaltar a cor do negro, como Beleza Pura, de Caetano Veloso, e Sou Negrão, de Rappin Hood.

As canções que tratam do gênero apontam para a independência da mulher. Um de seus marcos, aponta Daniel Gouveia, é É Papo Firme (Roberto e Erasmo Carlos). Outro tema que aparece com muita força é o da homossexualidade, que vai de Homem com H, de Ney Matogrosso, a Robocop Gay, dos Mamonas Assassinas. Para ele, isso indica um significativo salto de mentalidade: “Não quer dizer que no Brasil tenha mudado tão fortemente o pensamento das pessoas, mas no âmbito da canção popular, sim. É permitido cantar uma música com temática abertamente homossexual e atingir o rádio sem nenhuma censura.”

Quando o assunto é religião, o que se apreende é uma grande surpresa, segundo o pesquisador. O catolicismo, religião majoritária no país, presente em canções como Romaria (Renato Teixeira) e Nossa Senhora (Roberto e Erasmo Carlos) não vai longe no repertório nacional. A metade das músicas estudadas trata de religiões afro-brasileiras. “É curioso, porque elas sempre foram estigmatizadas, por conta do desconhecimento. Mas são bem aceitas na música”, analisa, citando Oração de Mãe Menininha, de Dorival Caymmi.

Protesto e desinteresse

Se ao cantar a fé o brasileiro vai contra o senso comum, o oposto ocorre quando se trata da política. De acordo com Daniel Gouveia, as músicas estudadas reforçam a idéia de que o engajamento político só teve força durante a ditadura militar, deixando espaço para o desinteresse após a redemocratização. O pesquisador explica que uma lacuna foi aberta depois da intensa produção de músicas de protesto nas décadas de 1960 e 1970. “Em 88, Gonzaguinha fala de direitos [É]. Em 1993, surgiu uma canção sobre o impeachment do Collor [Tô Feliz (Matei o presidente), de Gabriel, O Pensador] e outra em 2005 sobre o mensalão [Vossa Excelência, dos Titãs]. O Brasil não foi uma maravilha na política durante esse tempo. Por que poucos falaram disso? Público e compositores acharam que, com a volta da democracia, estava tudo bem, e não é exatamente assim.”

Com uma amostra variada, que passa pelo rock, samba, MPB, pagode, pop e axé, a pesquisa levanta uma questão que vai além de seu objetivo inicial. “Não é só a MPB que pensa o Brasil”, conclui Daniel. Para ele, “quem escreve uma música faz parte de um grupo social da mesma maneira que o Chico Buarque. A percepção de mundo pode ser diferente, mas o contexto é o mesmo”. O pesquisador cita como exemplos Barracos, de Netinho, que critica a situação habitacional de Salvador, e Madagascar Olodum, do Olodum, que denuncia a segregação racial.

Dissertação: Das coisas que aprendi nos discos – Cancioneiro popular brasileiro e identificação nacional
Autor: Daniel Gouveia de Mello Martins
Defesa: 15 de maio de 2009
Programa: Pós-Graduação em Sociologia
Orientador: Francisco Coelho dos Santos