Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 1 - nº. 2 - 2003

Editorial

Entrevista
Humanidade inquieta
Ivan Domingues

Cidadania
Uma república a ser revelada

Artigo: Não caibo mais nas roupas em que eu cabia

Comunicação
A hora do Brasil

Artigo: Decifra-me ou...

Novas tecnologias
Com quantos bits se faz um coração?

Artigo: Tecnologia e suas metáforas

Saúde
Estética aplicada

Artigo: Ser contra o naufrágio

Especial
O caminho da democratização

Artigo: Muito além da reserva de vagas

Engenharia
Engrenagem perfeita

Artigo: A arte do possível

Cultura
Chá das cinco

Artigo: O desafio das diferenças

UFMG Diversa
Expediente

Outras edições

especial

O caminho da democratização

Estudo da UFMG propõe novo rumo para o debate sobre ampliação do acesso à universidade pública

Nos últimos tempos, o debate sobre a ampliação do acesso à universidade pública e de qualidade é crescente e faz ferver o caldeirão de idéias. Em meio à polêmica, o Conselho Universitário da UFMG e o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) aprovaram a proposta de ampliação dos cursos noturnos na Instituição. Além dessa medida, em maio haverá um grande seminário na Universidade, no qual, certamente, concordâncias e divergências irão aflorar.

A política aprovada de criação de cursos noturnos baseia-se em estudo realizado por uma comissão formada, por iniciativa da Reitoria, pelos professores Maria do Carmo Peixoto, Antônio Emílio Araújo, Mauro Braga e Ricardo Fenati, com base nas informações prestadas pelos candidatos ao Vestibular 2003.

Guilherme Reis

Pela primeira vez indagados sobre raça/cor, os candidatos se disseram majoritariamente brancos (65%). Os pardos são 24%, os pretos, 7%. Índios e amarelos representam 4% dos concorrentes da primeira etapa. O confronto dos dados sobre raça/cor com o Censo de 2002, observam os professores, mostra que “o percentual de pretos reproduz o padrão da população mineira e brasileira, entretanto há uma sobre-representação dos brancos e uma sub-representação dos pardos”. Todos os dois dados (origem escolar e raça/cor) foram esmiuçados e problematizados. Com isso, a simplicidade aparente dá lugar a uma complexa análise e a realidade dos números aponta para uma instituição não elitista, mas que, também, está longe de demonstrar equilíbrio em relação às diferentes classes sociais que a compõem.

Apesar de 40% em média dos alunos da UFMG serem provenientes de escola pública, a desigualdade fica nítida quando se analisa a permanência na Universidade. Para melhor compreensão, o estudo dividiu os cursos na UFMG em três grupos: os que aprovam menos de 30% dos alunos de escolas públicas (num total de 14), os que aprovam entre 30% e 50% de escolas públicas (15) e os que aprovam mais de 50% desses alunos (27). Os cursos foram também classificados de acordo com a dificuldade de aprovação (conforme média da nota mínima verificada nos três últimos vestibulares e utilizando-se uma escala de zero a dez): os cursos com nota entre seis e dez, os com notas entre três e seis, e aqueles abaixo de três.

A despeito de a maioria absoluta dos cursos (27) ter um percentual maior de alunos de escolas públicas, o problema é grande porque estes optam por cursos em que a nota média de aprovação é menor e pelo turno da noite, o que sugere que a escolha, entre os candidatos de escola pública, passa pelo curso que apresenta menor dificuldade de acesso e disponibilidade de horário e não, pelo real desejo profissional. “Estudantes de escolas públicas ou que se considerem pretos ou pardos tendem a concentrar sua escolha nos cursos cuja média de aprovação é menor”, atesta o estudo. Constatou-se ainda que, no caso dos cursos de aprovação média entre três e seis, “a concorrência de alunos oriundos da escola pública tende a reproduzir o padrão médio da Universidade”. Nos cursos de nota média elevada, de seis a dez, os alunos vêm de escola privada e brancos são maioria.

A seletividade social é mais óbvia, ressalta a análise da comissão, quando se verifica que os estudantes de escolas públicas ou pretos e pardos aprovados para a segunda etapa estão em menor número que o de inscritos. Dois aspectos reforçaram a opção da comissão pela proposta de ampliação dos cursos noturnos. O primeiro, o de que a “seletividade social” no vestibular se expressa mais fortemente pela origem escolar do que por meio da caracterização da raça – a chance de aprovação dos candidatos brancos é 36% maior que a dos concorrentes pretos e pardos, porém a probabilidade de aprovação dos candidatos de escola privada é 85% maior do que a dos alunos que estudaram em escola pública.

O segundo aspecto está alicerçado nos exemplos da grande adesão dos alunos de escola pública ao horário da noite. Se há oferta do curso noturno, a procura não só é intensa como os aprovados são, em grande número, originários de escola pública. Em alguns casos, bem acima da média pretendida pelos defensores das cotas sociais (que definem percentual das vagas para as escolas públicas). No Vestibular 2002, o curso de Administração diurno teve 20% de aprovados de escolas públicas, contra 36% no curso noturno; o de Ciências Biológicas alcançou 25% no diurno contra 70% no noturno; e o de Engenharia Mecânica ficou com 23% e 63%, respectivamente.

Novas vagas, novos investimentos

Na UFMG, a concentração de vagas noturnas é de apenas 16%, abaixo da média entre as universidades federais do País, em torno de 23%. Diante desses dados, a comissão concluiu que deve ser feito um esforço junto aos cursos em que os ex-alunos de escolas públicas têm presença muito pequena (bem aquém da média geral de 40%) para se alcançar maior inserção deles na UFMG. Entre esses cursos, entretanto, estão quatro que dificilmente poderiam funcionar à noite, devido à elevada carga horária e à concentração das aulas em dois períodos do dia.

Para os cursos de Medicina, Medicina Veterinária, Odontologia e Fisioterapia (todos entre os cursos que aprovam menos do que 30% de alunos de escola pública), a comissão sugere, como forma de ampliação do acesso, a adoção das cotas sociais. Essa política, ressaltam os professores, deve ser implementada somente na segunda etapa do vestibular. A justificativa para tal tese é a de que o mérito acadêmico deve ser preservado acima de tudo, ou seja, tanto os candidatos de escolas públicas quanto os de instituições privadas que concorrem a uma vaga nesses cursos têm que conseguir uma nota mínima de aprovação estabelecida na própria disputa.

A decisão oficial da UFMG de aumentar o número de cursos noturnos como estratégia de democratização do acesso à Instituição, destaca a professora Maria do Carmo Peixoto, tem um preço, e esse preço, político e financeiro, é que a Universidade terá que enfrentar. “A ampliação de cursos não pode ser feita sem a garantia de recursos, e isso exige uma pressão da Instituição frente aos ministérios da Educação e do Planejamento”, salienta. Ela lembra que, para seguir esse caminho, a UFMG tem autonomia (apesar de essa autonomia estar diretamente relacionada à liberação de verba), o que não ocorre com relação à modificação dos critérios para a seleção, no caso, o emprego de cotas sociais ou cotas étnicas.

“A idéia é mudar o cardápio de cursos que hoje está disponível, adequando-o a quem precisa trabalhar o dia inteiro”, reforça Maria do Carmo. Ela e a comissão acreditam que a demanda pelos cursos noturnos de áreas nas quais a concorrência tem exigido maior nota mínima será muito grande. “Foi o que aconteceu na Engenharia Mecânica”, lembra. A primeira turma do curso noturno de Mecânica está no quinto período, fase em que os alunos passam a cursar as matérias específicas da área, já que, até o quarto, as aulas são dadas no Instituto de Ciências Exatas (ICEx).

Guilherme Reis

Segundo o chefe do departamento de Engenharia Mecânica, professor Ramon Molina, a questão social contemplada pela oferta do curso noturno é muito importante para a Engenharia, mas é necessário infra-estrutura adequada para se manterem cursos de qualidade iguais aos da manhã. “Os professores vão ter que trabalhar em três turnos, os laboratórios e a secretaria terão que funcionar normalmente, e não estamos totalmente preparados”, adverte.

A estrutura, a qualidade e a exigência de dedicação do estudante ao curso são, também, pesos-pesados quando se trata de Medicina. Segundo o diretor da Faculdade de Medicina, José Geraldo Brasileiro Filho, para se ministrar o curso à noite seria necessário, pelo menos, dobrar os anos de permanência do aluno na Universidade, pois a carga horária exige aulas durante todo o dia. Medicina, diz ele, é um curso essencialmente prático a partir do terceiro período e é necessária a presença do aluno nos laboratórios e hospitais. “O noturno, acredito, não seria recomendável para a Escola. Eu não conheço nenhuma experiência desse tipo, mas a lógica indica que isso não seria viável”, assinala.

A ampliação de vagas também não parece exeqüível na Medicina, diz Brasileiro Filho. O curso, na UFMG, oferece 320 vagas por ano e é o maior do País. Os outros cursos, tanto de universidades públicas quanto privadas, dispõem de, em média, 200 vagas anuais. A opção pelas cotas sociais, assinala o diretor, deve ser “no mínimo discutida em profundidade”, porque é a chance aparentemente mais viável de se aumentar o número de alunos provenientes de escola pública na Faculdade. Na Medicina, a presença desses alunos é de apenas 16,8%. “Se acreditamos que estudar na escola pública é um indicador social importante, conseguir aumentar a entrada desses alunos na Medicina é praticar uma maior inclusão”, sustenta.

Brasileiro Filho ressalta que o debate está começando na Faculdade de Medicina. “O tema é muito complexo. Pessoalmente, vejo com bons olhos haver alguma cota que vincule a questão da entrada à escola pública, mas essa é uma discussão que tem de envolver a todos”, enfatiza, ressalvando, entretanto, sua concordância com o aspecto do mérito apontado pelo estudo aprovado pelo Conselho Universitário e pelo Cepe. “Qualquer acesso tem de ser fundamentado no critério da competência”, defende. O diretor lembra que os candidatos que disputam o vestibular de Medicina são muito bem preparados. Os que passam na primeira etapa (três por vaga) acertam 85% das questões e provam que têm plenas condições de fazer o curso sem maiores dificuldades.

O professor do departamento de Comunicação, Dalmir Francisco, elogia a iniciativa oficial da UFMG de ampliar os cursos noturnos, mas não esconde sua decepção ao saber que a Instituição não optou pelas cotas étnicas. “Disputa por vagas em cursos em uma universidade pública, gratuita e de boa qualidade como a UFMG será sempre elevada e os candidatos econômica e financeiramente privilegiados terão um lote a mais de vagas para ocupar”, argumenta. O professor acredita que a cota étnica pode demorar um pouco mais para se tornar realidade, mas será inevitável.

O tema da inclusão social não tomou conta de todas as instâncias de representação na UFMG e parece estar, ainda, distante do amadurecimento. O Diretório Central dos Estudantes (DCE) e a Associação dos Professores Universitários (Apubh) ainda não têm uma posição definida. Segundo Luana Meneguelli Bonone, aluna do sexto período de Jornalismo, eleita recentemente coordenadora do DCE, a entidade não tem uma proposta fechada, apesar de a ampliação dos cursos noturnos ser uma antiga reivindicação do movimento estudantil. “O aumento de vagas nas escolas particulares mostra que as federais estão cada vez mais ficando para trás”, diz ela, ressaltando que as cotas são “ainda muito polêmicas”, mas devem ser encaradas como uma possibilidade de ampliação do acesso, assim como uma maior implementação de políticas de permanência do estudante pobre na Instituição.