Revista da Universidade Federal de Minas Gerais
Ano 2 - nº 4 - Maio 2004

Editorial

Entrevista - Axel Kahn

Aliado da ciência
Uma instância para a crítica do conhecimento

A biotecnologia na área da saúde - Joaquim Antônio César Mota

Saúde
Esperança no horizonte

Sociedade
Sob os olhares de Hubble

Ciência e ética: um pacto fadado ao fracasso? - Ricardo Fenati

Violência & criminalidade
Em busca de uma ação solidária

Clonagem: limites e possibilidades -
Sérgio D. J. Pena

Entre a prudência e o sonho - Telma Birchal

Teatro
Arte que liberta

A ética nos mass media - Rodrigo Duarte

Ambiente
Vida longa, Mata Altântica

O meio ambiente como bem comum - Rogério Parentoni e Francisco A. Coutinho

Comunidade
Um por todos, todos por um

Comportamento
Gerações em conflito

Qualidade de vida
Luta pelo bem-viver

Rede digital
Solidariedade em cadeia

A mídia e a Medusa: as imagens televisivas e a ética - César Guimarães

UFMG Diversa Expediente

Outras edições

Qualidade de vida

Luta pelo bem-viver

Portadores de esclerose múltipla, doença ainda mal conhecida pela medicina, encontram refúgio em centro de estudos do HC

Quando se viu doente, há um ano, sem saber, ao menos, o nome do mal que tinha, a cozinheira Vera Lúcia Ribeiro, 49 anos, entregou-se ao desespero. Ainda hoje, em muitos momentos, a morena forte, olhos grandes, sente uma vontade incontida de chorar. Ela é movida pelo mesmo sentimento que acompanha a bonita e magra auxiliar de enfermagem Anita Ferreira Tavares, 50 anos. As duas não se conheciam, até se tornarem companheiras na luta pelo bem-viver. Elas e outros pacientes de esclerose múltipla, doença desconhecida inclusive por muitos médicos, participam regularmente de programas de apoio aos portadores e de tratamento desse mal, desenvolvidos pela UFMG .

Antes de chegarem ao Centro de Investigação de Esclerose Múltipla (Ciem), do Hospital das Clínicas, todos que ali freqüentam lutaram, durante meses, contra sintomas terríveis, como dormências, dores por todo o corpo e até cegueira. Pior ainda: desconheciam completamente as causas desses males, na verdade, sintomas de um mal maior. No Ciem, eles readquiriram parte da paz interior perdida bem antes da revelação do diagnóstico. Lá, compartilham dificuldades físicas e emocionais, que, muitas vezes, parecem impossíveis de superar.

Sintomas

Há dois anos e meio, os pacientes do Ciem passaram a contar com a assistência do Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento (LND), criado no curso de Psicologia, em l997. “A esclerose múltipla é uma doença degenerativa do sistema nervoso central e um dos principais sintomas é a fadiga anormal’, explica o neurologista e especialista em Medicina Comportamental Vitor Geraldi Haase. Seus portadores sentem-se extremamente cansados quando submetidos a qualquer tipo de esforço e, por isso, deixam de exercer muitas atividades que os ajudariam a superar, pelo menos em parte, os problemas da enfermidade.

É nesse contexto que os profissionais do Laboratório trabalham, em parceria com a equipe do Ciem. Um grupo, formado atualmente por 11 pessoas, é acompanhado por meio de programas de avaliação das alterações cognitivas, especialmente a memória, e de reabilitação física orientados pelo LND. O primeiro programa, psicoeducativo, aborda, por exemplo, atividades para a ativação da memória, comprometida com a doença, e de compreensão e aceitação da esclerose múltipla.

Vlad E. Poenaru / Joacélio B. da Silva

O segundo baseia-se na realização de exercícios aeróbicos, que permitem aos pacientes reconquistarem um condicionamento físico que amenize as conseqüências da doença. Os exercícios, coordenados pelo fisioterapeuta Luiz Edmundo Costa, são realizados no Parque Municipal e no Laboratório do Movimento, pertencente à Faculdade de Medicina. “São pessoas que percebem os sintomas da doença no auge de suas vidas produtivas”, lembra Haase, um dos coordenadores do LND. Os resultados do trabalho são apurados por métodos de controle e, segundo Haase, demonstram ganhos muito significativos.

No programa de aeróbica, a melhoria no sintoma de fadiga, numa escala de zero a 50, alcançou 10 pontos de diferença. Um grupo que iniciou os programas, mas não avançou no tratamento, serve de referência para as avaliações. Mas a importância de todo o trabalho pode ser mais bem dimensionada pelo vínculo criado entre os pacientes. O grupo do Ciem conquistou segurança suficiente para pensar em ajudar outros pacientes. Homens e mulheres querem atuar como monitores do Centro, ampliando, assim, a possibilidade de atendimento aos portadores de esclerose múltipla.

Dramas

“O grupo passou a ser uma referência para todos nós. Muitos, dentre os que sofrem de esclerose múltipla, não têm sequer com quem falar sobre o que é isso na vida deles. Aqui, a gente conversa e não se sente abandonado”, diz o arquiteto Romildo Nascimento Custódio, de 48 anos. Durante quase três anos, Romildo foi tratado como se fosse portador de uma outra doença, o que só fez aumentar sua angústia e o sentimento de não ser compreendido pelos que estavam à sua volta.

“Eu vivia tudo sozinho. Meu chefe me avaliou mal no trabalho, porque achava que eu estava me isolando”, conta o arquiteto. Este semestre ele se aposentou e está aproveitando para ficar mais tempo com a família. “Estou conseguindo levar a doença”, diz.

Fechar-se ao contato com as pessoas foi a reação do motorista e mecânico Ronildo Santos Oliveira, de 46 anos. “Sempre fui calado, mas piorei. Fico chorando sozinho e não gosto nem de pensar que não vou mais fazer o que fazia, trabalhar no que eu gostava”, desabafa.

As lamentações de Ronildo fazem eco com o drama vivido pela auxiliar de enfermagem Anita Tavares. Para ela, tem sido muito difícil aceitar o fato de não poder mais trabalhar como antes. “Passei 20 anos na área de Saúde sem nunca ter ouvido falar de esclerose múltipla. Foi um choque sentir as minhas limitações. Eu tenho tanta vontade de trabalhar, mas não posso”, diz ela, agora aposentada e, atualmente, dependente de um andador para se locomover.

Com três filhos criados, Anita lembra que sofreu horrores até aceitar a doença que a pegou “desprevenida”. Ela ainda sofre muito e, para tentar conviver melhor com as limitações, faz acompanhamento psicológico, também na UFMG. Anita quer voltar a trabalhar e, como faz artesanato, busca um lugar para expor seus produtos. “Muitos no Ciem fazem alguma coisa e, por isso, estamos pensando em ter um espaço que a gente possa dividir”, conta.

“Melhorei muito desde que comecei no Ciem. Antes, eu não tinha ânimo nem para tomar água. Vivia numa preguiça louca e, por isso, me isolava e chorava sem parar. Não é mais assim. Ainda choro muito, mas sei me controlar”, confidencia Vera Lúcia, a cozinheira de olhos grandes. Num dos surtos da doença, ela perdeu a visão e passou mais de dois meses internada antes de receber o diagnóstico definitivo. A dor não a largou mais, mas Vera Lúcia já consegue reunir forças para consolar os amigos que ganhou no Ciem.