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Nº 1347 - Ano 28 - 02.05.2002

 

 

Ações afirmativas: por que não?

Nilma Lino Gomes*

os últimos meses, um debate vem tomando espaço nos noticiários e na arena política: as ações afirmativas para o povo negro. Uma questão polêmica e inovadora, mas antiga para aqueles que integram ou que mantêm contato com o movimento negro brasileiro.

No entanto, esse debate, ainda que necessário, vem sofrendo sérias distorções e equívocos. Embora não possa desenvolver uma discussão longa e detalhada nos limites desse texto, julgo oportuno destacar alguns pontos e esclarecer outros, pois reduzir o caráter e a abrangência das políticas de ações afirmativas à concessão de cotas (ou reserva de vagas) para negros na universidade pode ser fruto de falta de informação, de desentendimento e de manipulação política. Esclareço, desde já, que sou favorável à implementação das cotas, desde que tal ação seja contextualizada, problematizada e discutida à luz da história e da realidade brasileira e não como mera transposição da experiência norte-americana. Também esclareço que a concessão de cotas não representa uma novidade para a sociedade brasileira, pois vem sendo implementada nos partidos políticos e em experiências que envolvem pessoas portadoras de necessidades especiais.

O Ipea publicou uma pesquisa intitulada Desigualdade racial no Brasil; evolução das condições de vida na década de 90, que revela dados alarmantes sobre a educação de negros e brancos em nosso país. Em 1999, 89% dos jovens brancos entre 18 e 25 anos não haviam ingressado na universidade. Entre os jovens negros nessa mesma faixa de idade, 98% deles não ingressaram na universidade, ou seja, só 2% conseguem alcançar tal nível de ensino. Esses e outros dados apresentados pela pesquisa do Ipea revelam que, ao olharmos a atual situação educacional dos negros brasileiros, sobretudo no ensino superior, encontramos dois eixos sobre os quais ela tem sido estruturada: exclusão e abandono. As trajetórias escolares de jovens negros e brancos continuam pautadas por uma desigualdade secular a ser superada, e as políticas educacionais de caráter universal implementadas ao longo dos últimos anos não têm conseguido alterar a desigualdade racial na educação brasileira.

Em seu livro Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade, Joaquim Barbosa Gomes mostra que, do ponto de vista jurídico, as políticas de ação afirmativa podem ser compreendidas como uma criação pioneira do Direito norte-americano, a qual representou, em essência, a mudança da posição do Estado, que, em nome de uma suposta neutralidade, aplicava suas políticas governamentais indistintamente, ignorando a importância de fatores como sexo, raça e cor. O autor nos ajuda a entender que as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como educação e emprego.

Dessa forma, é importante esclarecer que as ações afirmativas não se reduzem à concessão de cotas que promoveriam maior igualdade de oportunidades das minorias a determinados setores do mercado de trabalho e a escolas. As cotas são apenas uma das estratégias de aplicação dessas ações e, ao serem implantadas, desvelam a existência de um processo histórico e estrutural de discriminação que assola determinados grupos sociais e étnico-raciais. Talvez por isso elas incomodem tanto a sociedade brasileira, uma vez que ainda impera em nosso imaginário a crença de que somos uma "democracia racial". Ora, a realidade social e educacional dos negros e mestiços revelada pelas pesquisas mais recentes nos mostra o contrário.

A demanda das cotas por alguns setores do movimento negro, do Estado e da sociedade civil revela, também, a existência de um novo posicionamento da nossa sociedade frente à discriminação racial. Por isto, é preciso estar atento, acompanhando de perto os objetivos subjacentes e a concretização dessas propostas. A concessão de cotas é uma medida de caráter emergencial e provisório de correção de desigualdades. Ao estabelecê-las, a sociedade e o Estado devem comprometer-se com a adoção de outras políticas que visem à instauração da democracia entre os diferentes segmentos sociais e raciais. Isso dependerá _ e muito _ do nosso compromisso de lutar contra a discriminação racial e da implementação de estratégias efetivas, ou seja, de ações afirmativas, de superação da desigualdade racial e social.

Imbuído dessa concepção, um grupo de professores da FaE, do ICEx e da Escola de Ciência da Informação apresentou, ao concurso Cor no Ensino Superior, do Laboratório de Políticas Públicas da Univesidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o projeto Ações afirmativas na UFMG, que foi aprovado. Acreditamos que esse projeto possa ajudar a UFMG a construir uma nova posição frente aos debates mais recentes sobre negro e educação no Brasil, sintonizando-se com as lutas e demandas dos movimentos sociais. Em vez de passarmos longas horas argumentando se somos contra ou a favor das políticas de ação afirmativa, poderíamos questionar o que a sociedade brasileira tem feito para superar o racismo e a discriminação racial. Por isso, vale a pena perguntar: ações afirmativas, por que não?

* Professora da Faculdade de Educação