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Nº 1632 - Ano 35
03.11.2008

A história que o DNA registrou

Estudo vencedor do Grande Prêmio de Teses da UFMG explica
a formação do povo brasileiro a partir da genética

Filipe Chaves
Vanessa Gonçalves
Vanessa Gonçalves em laboratório do ICB: DNA mitocondrial permite estudar formações e relações entre as populações humanas

Léo Rodrigues

No início do século 21, história e biologia estão definitivamente entrelaçadas. A pesquisa genética, muitas vezes, se serve de informações históricas e, ao mesmo tempo, as complementa. Essa complexa relação entre as duas áreas de conhecimento é revelada na tese de doutorado de Vanessa Faria Gonçalves, vencedora do Grande Prêmio de Teses 2007 da UFMG, na área de Ciências Agrárias, Biológicas e da Saúde. Orientada pelo professor Sérgio Pena, do Departamento de Bioquímica e Imunologia, a pesquisa busca identificar a ancestralidade de populações do Brasil e de americano-europeus a partir do DNA mitocondrial.

A correlação história-biologia é estabelecida pelo DNA mitocondrial, presente no interior das mitocôndrias, no citoplasma das células eucariotas. Ele tem se revelado uma importante ferramenta molecular para estudos sobre a ancestralidade de populações humanas. “O DNA mitocondrial apresenta algumas características que permitem o acúmulo seqüencial, isto é mais ou menos cronológico, das mutações ocorridas ao longo da evolução da humanidade. Assim, as mutações específicas de um continente ou de uma população possibilitam aos pesquisadores estudar a história de formação e as relações entre as populações humanas”, explica Vanessa Gonçalves.

Embora a população ameríndia do Brasil tenha sofrido uma drástica redução demográfica nos últimos 500 anos, suas linhagens mitocondriais foram assimiladas e persistem na população brasileira atual, representando cerca de 30% de sua constituição. Esse reservatório de linhagens faz da população brasileira uma rica fonte de informações sobre nações ameríndias extintas, especialmente da costa leste do país. Mas seria possível resgatar tais linhagens ameríndias?

Para responder a esta pergunta, a equipe do professor Sérgio Pena, da qual Vanessa é integrante, decidiu estudar a ancestralidade da população de Queixadinha, no Vale do Jequitinhonha. O local foi habitado até o início do século 19 pelos temidos índios Botocudos, conhecidos pela ferocidade e pela resistência à civilização branca. “Em 1808, a Coroa Portuguesa emitiu três cartas régias que determinavam uma guerra contra eles”, conta Vanessa Gonçalves. A operação resultou no extermínio do grupo.

Garimpagem

A intenção da equipe da UFMG era testar a possibilidade de resgatar haplótipos mitocondriais (linhagens ou seqüências mitocondriais) daquele grupo indígena, em uma estratégia denominada “garimpagem homopátrica”. Uma das integrantes do grupo, a pesquisadora Flávia Parra encontrou alguns haplótipos mitocondriais – não-descritos para nenhuma outra população já estudada –,o que reforçou as suspeitas de que a atual população do Vale do Jequitinhonha seria descendente dos Botocudos.

Parra também observou, entre os moradores de Queixadinha, um excesso de haplótipos ameríndios do Grupo C, um dos quatro grupos de DNA mitocondrial encontrados no continente americano. Os resultados de seu estudo foram reunidos em tese de doutorado defendida em 2003.
A metodologia então proposta acabou validada quatro anos depois, a partir de estudos de restos mortais dos Botocudos, abordagem desenvolvida na tese de doutorado de Vanessa Gonçalves com a colaboração do Setor de Antropologia Biológica do Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde estão preservados fósseis do grupo indígena. O estudo analisou o DNA extraído de 14 dentes de crânios associados àqueles povos índigenas. Apenas seis haplótipos mitocondriais diferentes foram encontrados nos 14 dentes, sendo quatro pertencentes ao haplogrupo C.

Além disso, dois deles apresentaram identidade com os haplótipos observados em Queixadinha. “Este compartilhamento de haplótipos entre as duas populações valida a estratégia de garimpagem homopátrica e abre perspectivas de reconstituição de nossa história, especialmente em casos em que a análise direta de material genético não é possível”, argumenta Vanessa Gonçalves.

Nas entranhas da herança negra

Outro desafio da tese foi estudar a ancestralidade de linhagens mitocondriais em indivíduos pretos da cidade de São Paulo com o objetivo de identificar a contribuição de africanos, europeus e ameríndios na composição genética do brasileiro negro. O estudo mostrou que 85% das linhagens mitocondriais destes indivíduos eram de origem africana do Sub-Saara, 11,7% ameríndio-asiáticas, 2,5% européias e 0,8% norte-africanas.

O trabalho também se dedicou a investigar as prováveis origens geográficas das linhagens africanas destes indivíduos e a estimar a contribuição relativa de cada uma das regiões africanas que compunham a rota do tráfico de escravos para o Brasil. “Análises da estrutura populacional das três regiões africanas mostraram a existência de uma subestrutura genética entre as regiões daquele continente e uma maior proximidade dos indivíduos de São Paulo com a região centro-oeste da África, ou seja, um perfil de linhagens mitocondriais mais parecido com aquela região”, aponta Vanessa. O centro-oeste africano é a região que mais contribuiu (45%) para a constituição genética da amostra de São Paulo. O resultado, segundo Vanessa Gonçalves, corrobora as informações históricas sobre a origem dos escravos que se fixaram na região Sudeste do Brasil.

O estudo realizado em São Paulo captou ainda uma presença significativa de linhagens com origem na costa oeste africana - cerca de 40% do total. “A grande contribuição da costa oeste africana pode ser explicada, entre outros fatores, pelos fortes movimentos de migrações internas de escravos que ocorreram entre o fim do tráfico, em 1850, e a abolição da escravatura, em 1888”, analisa Vanessa Gonçalves, lembrando que a cultura do café, que despontava na região do Vale do Rio Paraíba, ainda dependia da mão-de-obra escrava. Assim, grandes levas de escravos originárias da Bahia e de outros estados do Nordeste – estagnados desde a falência dos engenhos de açúcar – foram deslocadas para São Paulo.

As pesquisas genéticas de Vanessa Gonçalves também confirmaram a proporção significativa de africanos da costa oriental da África – onde fica Moçambique - no Brasil. “Com a proibição do tráfico de escravos ao norte da linha do Equador, em 1830, ocorre o fechamento dos portos da costa oeste africana para o Brasil. Isso forçou os mercadores brasileiros a buscar escravos na costa oriental da África”, explica a pesquisadora.

Tese: O uso do DNA mitocondrial em quatro estudos envolvendo a ancestralidade de populações americanas nativas e miscigenadas
Autora: Vanessa Faria Gonçalves
Orientador: professor Sérgio Pena
Data de defesa: 4 de dezembro de 2007
Programa: Bioquímica e Imunologia do ICB