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Nº 1780 - Ano 38
18.6.2012

Entrevista / Carlos Palombini

Ética de uma arte condenada

Natália Carvalho

O chamado funk proibido – ou proibidão, como também é conhecida essa vertente do funk, condenada por fazer apologia ao crime – e os aspectos artísticos, culturais e políticos que cercam essa manifestação são tema da pesquisa desenvolvida pelo professor Carlos Palombini, da Escola de Música . Ele realiza seus estudos em programa de residência no Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat) da UFMG, com apoio da Fapemig.

Nesta entrevista ao BOLETIM, Palombini, que tem pós-doutorados na Unicamp, Inglaterra e França, explica como analisa o discurso dos artistas e a ética que o caracteriza. E conta como vê a influência da pacificação das favelas cariocas sobre o funk.

Qual o foco do projeto?

O foco sempre foi a escuta, num sentido amplo. A escuta da música e das pessoas. Eu queria entender a música como linguagem e compreender o que o discurso do Comando Vermelho [CV, maior facção do tráfico no Rio] representa. Não como discurso do crime, mas de uma ética. Eu observo a música, a voz e o discurso. Trabalho na tentativa de entender o que o rótulo “apologia” encobre, e procuro analisar a poética de alguns MCs. Não conheço hoje outro segmento da música brasileira que atinja o heroico, o épico e o trágico como o proibidão faz. Minha análise é cultural, mas obviamente passa pela perspectiva política do tráfico e da dinâmica das favelas.

Você valoriza o conteúdo ético que identifica nas letras. Em que medida isso é visível?

O discurso ético é evidente, por exemplo, no lema “o lado certo da vida errada”. A vida errada é a vida do crime, mas no crime existe também o certo e o errado. Acho que esse discurso transforma o Comando Vermelho em um grupo particular. Os melhores MCs não cantam funks de outras facções, os melhores bailes estão em favelas controladas pelo CV. Eu percebi que muitas das pessoas aderem ao discurso do tráfico, o público dos bailes, os MCs e os DJs, mas ainda assim prefeririam certamente que ele não existisse. Acredito que, para essas pessoas, muito mais importante que o crime, essa parte visível, seja a ética desse discurso. Por exemplo, o Smith, que era talvez o astro máximo do funk proibido na época das invasões do Complexo do Alemão e da Vila Cruzeiro [final de 2010], no Rio, canta alguns raps que são muito mais do que apologia ao crime – trata-se de representações poéticas da vida em vários aspectos do tráfico.

Como se faz o controle da divulgação e circulação dessas músicas?

Esses funks se enquadram como apologia ao crime. No Rio de Janeiro existem medidas contra a circulação, mas a maioria dos proibidões já é feita com mais de uma versão justamente para driblar essas restrições. Existem proibições previstas na legislação quanto a eventos, uma legislação evidentemente inconstitucional. O próprio crime de apologia, de acordo com o jurista Nilo Batista, ex-secretário de segurança do estado do Rio, é inconstitucional. A Constituição assegura a liberdade de expressão.

Como a pacificação das favelas do Rio está se refletindo no funk?

De várias maneiras, e eu estudei algumas especificamente. A UPP [Unidade de Polícia Pacificadora] e os políticos tomaram o lugar, nas letras, das facções inimigas e os nomes dos líderes, que começaram a se preocupar com a exposição, desapareceram dos raps. Os DJs tomaram precedência sobre os MCs, que, depois das prisões de Frank, Max, Tikão, Smith, todos da Penha, e Dido, do Borel, passaram a ficar temerosos de aparecer. A cena passou a se concentrar em comunidades periféricas, fora da mira do projeto de pacificação armada. Os bailes se deslocaram da região central do Rio e passaram para lugares mais afastados. Mas bailes continuam acontecendo graças à negociação por meio de propina, que no caso é chamada de arrego.

Se não houvesse tráfico, não existiria o proibidão?

Provavelmente. O proibidão é o retrato de uma política de segurança que só quer eliminar a visibilidade, sem eliminar o tráfico. O que muda com as UPPs é quem está segurando as armas. Para os moradores, continua o regime de terror, e muitos preferem o tráfico. Essa é uma ditadura muito severa, que às vezes chega a ser mais absurda do que a que vivemos em outros tempos. Artistas são executados. Grupos de extermínio de São Paulo executam pelo menos um MC por ano desde 2010. Já morreram Felipe Boladão e o Dj dele, Felipe da Praia Grande, Duda do Marapé, Primo e Careca.

Quando surgiu seu interesse pelo funk?

Foi em 2001. Eu havia passado dois anos trabalhando como professor convidado na Universidade Federal de Pernambuco, depois voltei para Porto Alegre, a cidade onde nasci. Na academia havia dois rapazes que sempre falavam coisas engraçadas, que eu não entendia. Coisas como “tchutchuca, vem aqui pro seu tigrão, vou te jogar na cama e te dar muita pressão”. Eu ficava intrigado com aquilo, e me perguntava onde eles aprendiam essas coisas. Certo dia eu andava pelo bairro em que minha família morava, região de classe média alta, ruas limpas e arborizadas. O sinal fechou, e escutei o som que saía de um carro: “Vem, tchutchuca linda. Senta aqui com seu pretinho...” Aí entendi o que acontecia. Ao mesmo tempo, eu lia o que as pessoas escreviam no jornal sobre a decadência da música brasileira, visões extremamente moralistas. A partir desse momento comecei a me interessar por esse gênero que gerava tantas discussões. Ouvir o funk despertou meu interesse pelas músicas que falam dos assuntos do tráfico, porque tanto a linguagem quanto o som são crus. Isso me atraiu.

[O projeto Funk Proibido: o certo é o certo e o errado é o errado, de Carlos Palombini, pode ser conhecido no site proibidao.org, desenvolvido em colaboração com Vincent Rosenblatt e Leandro Araújo]