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Nº 1919 - Ano 42
09.11.2015

opiniao

Vitória, o lobo e o tubarão

Vagner Luciano de Andrade (*)
Vanessa Colombo Corbi (**)

Vivemos em uma cultura antropocêntrica em que variados elementos culturais contribuíram para ampliar a dicotomia homem-natureza. De contos literários infanto-juvenis do passado – como a história do "lobo mau" – aos meios de comunicação de massa da atualidade, vários aspectos colaboram, justificam e consolidam o distanciamento humano dos elementos naturais e a consequente percepção negativa sobre eles. Lobo, no ecossistema terrestre, e tubarão, no marinho, são ideias negativas lamentavelmente repassadas de uma geração para outra, e a televisão contribui para ampliar essa triste realidade.

A maioria das pessoas tem medo de tubarões e preferiria vê-los mortos, e grande parte delas alimentou essa percepção por causa do filme Tubarão, de Steven Spielberg, de 1975. Outros – que se apropriaram de um antigo ditado de pescador, segundo o qual "se você come ele, é cação; se ele come você, é tubarão" – os veem como um valioso recurso comercial para a produção de sopa de barbatana. Finalmente, os ambientalistas o enxergam como elemento biótico particularmente suscetível à exploração humana e a seus impactos decorrentes. Nessa perspectiva, milhões de seres são demonizados: aranhas, besouros, cobras, escorpiões, lagartas, morcegos, ratos, entre outros.

Lobos e tubarões não são maus. São apenas seres vivos, como o humano também o é; isso precisa ser evidenciado nos programas educacionais para harmonizar a relação entre natureza e homem. Assim, os conteúdos curriculares de Ciências Biológicas, em especial os organizados didaticamente nas áreas de Ecologia e Biodiversidade, são de extrema importância teórica, epistemológica e metodológica para os processos formais e não formais subsequentes de educação ambiental. Em realidades socioambientais camponesas, em decorrência da proximidade dos corredores de fauna, as possibilidades educativas interdisciplinares são múltiplas e enriquecedoras. Nas comunidades rurais, a utilização de mecanismos pedagógicos do entorno se consolida como recurso didático que atrela a ação docente em Ecologia a outras áreas do conhecimento, em especial, Filosofia, Geografia, História e Sociologia. A Rede Ação Ambiental desenvolveu ações e atividades interdisciplinares envolvendo Ecologia, Geografia e História, com trabalhos lúdicos atrelados à ideia do turismo pedagógico (o trabalho de campo como meio de investigação e análise) entre alunos do 1º ao 5º anos numa escola camponesa. Foram abordados os seguintes temas: Trilhas do asfalto: leitura e interpretação de paisagens urbanas; Trilhas da terra: leitura e interpretação de paisagens rurais; Trilhas da mata: percepção e análise de elementos bióticos; Trilhas da água: percepção e análise de elementos abióticos.

Esse projeto favorece a reflexão didático-pedagógica sobre inúmeros questionamentos trazidos pelos alunos camponeses. Por estarem numa localidade rural longe da costa marítima, foi surpreendente a intervenção de uma aluna, que, em uma atividade lúdica, sobre água doce indagou:"O tubarão vive na água? Ele nos faz mal?". Perguntada pela professora sobre a razão dessa dúvida, uma vez que no ribeirão que banha a localidade não havia tubarões – o que não justificava seu temor – soube-se que ela havia assistido a um programa de televisão. Isso evidencia os impactos que a TV tem sobre a percepção de indivíduos em formação ao passar ideias errôneas na contramão do processo de preservação da natureza.

É uma pena que a TV brasileira, destituída de seu caráter educativo e mobilizador, tenha contribuído, por meio de reportagens, filmes e documentários, para a "demonização" do tubarão e de tantos outros animais. Talvez o único e verdadeiro "demônio" seja o modelo socioeconômico vigente que impacta profundamente todos os ecossistemas mundiais para promover o enriquecimento de poucos e a miséria de muitos. A histórica Rio + 20, realizada em junho de 2012, provou que falta ao homem compromisso com a natureza. Os tubarões são vítimas do homem e não o contrário. Vamos denominar essa aluna camponesa de "Vitória", nome de uma capital banhada pelo mar. Mar dos amigos tubarões, que dividem conosco a casa planetária impactada pela sociedade urbano-industrial capitalista.

Respondemos a você, prezada aluna, que o tubarão vive na água (salgada) e não nos faz mal! Lembre-se de que o homem faz coisas más e transfere a culpa aos animais. Quando, acidentalmente, o animal – seja lobo ou tubarão – ataca o homem ou outro ser vivo, isso evidencia algum desequilíbrio em seu ecossistema. Desequilíbrio causado pela "bondade" do capitalismo. A solução está na educação ambiental e na mobilização social alinhadas a um projeto de conservação de manejo da espécie, o único caminho para desmitificar a fama de "mau" do lobo e protegê-lo das maldades humanas. Ele não é pior nem melhor que o homem, mas apenas um dos muitos seres que compõem a biodiversidade e a sociodiversidade de nossa casa planetária. Assim, "Vitória" deixará de ser apenas o nome fictício de uma aluna camponesa mineira, que tinha medo do tubarão, ou apenas o nome de uma cidade marítima para se tornar a "vitória" da preservação natural e da construção de nova ordem social – a "vitória" do lobo, do tubarão e de todos os seres humanos que padecem nesse sistema.

(*) Agente de educação ambiental e mobilização social da Rede Ação Ambiental
(**) Graduada em Ciências Biológicas, mestre em Ecologia e Recursos Naturais, doutora em Ciências, com pós-doutoramento pela Universidade Federal de São Carlos. Coordenadora dos cursos da área de Sustentabilidade e Gestão Ambiental do Centro Universitário de Araraquara (Uniara)