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Movimento Slam

Pesquisas da UFMG mapeiam a força das ‘batalhas de poesia’ em Belo Horizonte

Capital desponta como referência nacional dessa expressão literária das periferias, que, apesar de ainda ignorada por parte da intelectualidade, inspira produções acadêmicas sob diferentes perspectivas

Por Ewerton Martins Ribeiro

Slammer João Paiva no palco, com camisa vermelha e microfone na mão, recitando poesia
João Paiva, slammer vencedor do Slam BR 2014; no ano seguinte, ele representou o Brasil na competição mundial
Foto: Redes sociais de João Paiva | Reprodução

Belo Horizonte é muito elogiada pelo footing literário que oferece hoje na região da Savassi, nas manhãs de sábado, no entorno de suas tantas livrarias de rua: Quixote, Scriptum, Jenipapo, Livraria da Rua, Outlet do Livro, entre outras. Estabelecidas em dois quarteirões da Rua Fernandes Tourinho e em seu entorno próximo, essas livrarias costumam sediar vários lançamentos ao mesmo tempo, tornando a região o ambiente perfeito para quem deseja se atualizar sobre o que de mais novo está ocorrendo na vida cultural, literária e intelectual da cidade.

Paralelamente, também é comum se destacar o bom momento vivido pelo meio editorial da capital, onde dezenas de boas editoras floresceram nos últimos anos, das independentes às de estrutura mais comercial (Mazza, Autêntica, Relicário, Impressões de Minas), muitas das quais responsáveis pelos lançamentos apresentados à cidade toda semana. O que pouca gente sabe é que, paralelamente a essa efervescência cultural mais burguesa e acadêmica, outro ambiente literário emerge tão ou mais pujante que esse, com “sedes” espraiadas por toda a cidade, do centro às periferias: é a cena dos slams, as batalhas de poesia.

Atualmente, a capital mineira – que completa 128 anos nesta sexta-feira, 12 de dezembro – é considerada uma referência nacional da modalidade, atrás apenas de São Paulo, a metrópole através da qual o slam entrou no país no início do século 21. Parte pela natureza mais periférica (local e cultural) do movimento, parte talvez pelo perfil médio dos seus participantes (em geral, jovens estudantes pobres e negros, pretos e pardos, desconectados do circuito burguês mainstream de produção de valor cultural da cidade), o fato é que o assunto pouco repercute na imprensa regional, revelando-se inclusive como uma estranha ausência no mais recente levantamento feito da cena literária da capital.

A despeito disso, a cena slam segue cada vez mais pujante na capital de Minas. É o que demonstram diferentes pesquisas realizadas na UFMG. Na última década, pelo menos oito trabalhos sobre o tema foram defendidos em diferentes programas de pós-graduação da Universidade. Essas teses e dissertações demarcam o slam talvez como o fenômeno literário mais relevante da contemporaneidade, passível de ser explorado por diferentes vieses – a começar pelo retorno que promove à origem oral da relação do homem com a poesia, anterior à criação da prensa e ao estabelecimento dos processos comerciais de circulação impressa das produções literárias.

A própria UFMG costuma ser palco de slams. O mais conhecido talvez seja o Slam da Última Semana, realizado regularmente na Arena da Fafich e em outros espaços da UFMG, inclusive com participações em eventos institucionais da Universidade, como o Novembro Negro e os festivais de arte e cultura.

Imagens do Slam da Última Semana
‘Slam da Última Semana’ costuma ocorrer na arena da Fafich, junto a outras atividades realizadas pelo movimento estudantil
Fotos: Redes Sociais do Slam da Última Semana | Reprodução

O slam na ‘capital dos livros’ e das editoras
A história dos slams na capital mineira teve sua pedra fundamental estabelecida em 9 de setembro de 2008. Naquele dia, depois de terem visitado um mês antes o sarau da Cooperifa, em São Paulo, os poetas e ativistas culturais Rogério Meira Coelho e Jessé Duarte reuniram-se no bar do seu Zé Herculano, no bairro Independência, no Barreiro, na divisa entre Belo Horizonte e Ibirité, para declamar poesias. Aquele momento marcou a fundação do Coletivoz Sarau de Periferia, ponto de partida para tudo o que viria a seguir.

Essa história é recuperada em diferentes trabalhos produzidos na UFMG, entre eles a dissertação A palavração: atos político-performáticos no Coletivoz Sarau de Periferia e Poetry Slam Clube da Luta, defendida pelo próprio Rogério em 2017 no Programa de Pós-graduação em Artes. Segundo o pesquisador e slammer, o que nascia ali era um movimento com fortes ressonâncias “dos campos da performance art e do teatro performativo”, ainda que sem plena consciência, naquele momento, desse engajamento na esteira de movimentos artísticos canônicos. Ao contrário, o que se começava a realizar, escreve Rogério, eram “atos político-performáticos vindos da Palavra em Ação”.

A atuação primeva do Coletivoz também foi estudada por Otacilio de Oliveira Junior na tese Entre a luta, a voz e a palavra: partilhas de sentido em torno de um sarau de periferia, defendida no Programa de Pós-graduação em Psicologia um ano antes, em 2016. Mobilizando instrumental teórico dos campos da psicologia social e da sociologia da arte, Otacilio investigou “a rede de significação” construída em torno do sarau, nesse momento preliminar da cena slam na capital mineira. Seu trabalho possivelmente foi o primeiro a tratar do tema na Universidade em um estudo de fôlego.

Segundo o pesquisador, os eventos naquela época, ainda que incipientes, já deixavam clara a sua vocação e se realizavam objetivamente como oportunidades de partilha de sentidos relacionadas a experiências de pobreza e de questões éticas e estéticas relacionadas às hierarquias sociais. Nos anos seguintes, esse viés – social e de classe, ao qual se somariam outros voltados para as demais questões relacionadas às minorias – se estruturaria como um eixo de convergência de todo o movimento slam na capital, em seu teor político.

“Inspirados na possibilidade de ouvir as diversas coletividades, o Coletivoz lançou livros, CDs de grupos de Rap e possibilitou que a cena da poesia, mesmo que incipiente, se tornasse cada vez maior na periferia”, escreve Lucas Oliveira Sepúlveda na dissertação A palavra é sua!: os jovens e os saraus marginais em Belo Horizonte, defendida em 2017 no Programa de Pós-graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social. No trabalho, ele detalha como, estimulados pelo advento do Coletivoz, outros saraus logo começaram a despontar na cidade.

O primeiro desses legatários foi o Sarau Vira Lata, criado por Kdu dos Anjos – um dos participantes do Coletivoz – no dia 30 de agosto de 2011, com forte ligação com o movimento hip-hop, do qual o slam se tornaria muito próximo. Naquele dia, teria ocorrido a primeira edição do Vira Lata, na Praça da Boa Viagem, região central de Belo Horizonte; nos anos seguintes, o sarau se tornaria itinerante, passando “a ocupar não só os espaços centrais da cidade, mas praças e centros culturais da periferia”, como escreve Sepúlveda.

Segundo o pesquisador, o intuito da mudança era não só o de levar a poesia a outros lugares da cidade, mas também o de fazer com que os sujeitos fossem estimulados a se deslocar até locais desconhecidos dela, “ampliando o processo de aprendizado sobre a cidade”, em uma espécie de intercâmbio entre periferias. Já os slams, propriamente, no formato em que hoje eles são conhecidos e praticados na capital, vão eclodir na cidade em meados da década de 2010.

Foto em preto e branco. Nela o slammer Rogério Meira Coelho segura um microfone, recitando poemas, e tem um dos braços levantado para o alto
Fundador do slam Clube da Luta e um dos precursores da modalidade em Belo Horizonte, Rogério Coelho fez mestrado e doutorado sobre o tema na UFMG
Foto: Beth Freitas | Divulgação

Clube da Luta
Tudo parece começar com o slam Clube da Luta, o primeiro a ser realizado no modelo canonizado de slam. Ele foi criado em 2014 por Thaís Carvalhais e por Rogério Coelho. Mantendo seus trânsitos entre a Universidade e a periferia, Coelho defenderia, em 2023, nova pesquisa relacionada ao tema, a tese As afrografias e suas ressonâncias nas performances de poesia falada no slam, no âmbito do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários (Pós-Lit).

Idealizado por Coelho, o Clube da Luta estabelece-se no Teatro Espanca, no chamado Baixo Centro da capital mineira, no seu momento de maior efervescência cultural. Nos anos que se seguiriam, o “clube” transformaria-se na mais relevante cena de slam da cidade, ativa até hoje. Em sua esteira, inúmeras batalhas de poesia seriam criadas em Belo Horizonte nos anos seguintes, segmentando-se ora regionalmente, ora em modelagem (fixas, itinerantes), ora em público-alvo.

Em 2015, por exemplo, nasce o Slamternas, no bairro Sinimbu, organizado pelo Coletivo Lanternas (como desdobramento do Sarau dos Lanternas, que já existia desde 2014). Em 2016, em Sarzedo, surge o Slam da Estação, de perspectiva itinerante, promovido pelo coletivo Nosso Sarau, que também já ocorria como sarau desde 2014. Em Ibirité, surge o Slam Trincheira, também itinerante, organizado por Leandro Zere e João Victor Gomes junto ao coletivo Terra Firme.

Em 2017, emergem ao menos três outros slams na cidade: o das Manas, no Centro, promovido pelo coletivo Manas e voltado exclusivamente para mulheres; o Valores, no Horto, organizado por Fabiana D’Acântra e Saulo Mart; e o Avoa, Amor, de perfil itinerante, promovido pelo Coletivo Avoante. Em 2018, dando sequência a esse movimento, Felipe Beluca e João Paiva criam, no Barreiro, o Slam do Viaduto pra Cá, e o Programa Fica Vivo!, no bairro de Conjunto Morro Alto, em Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), cria o Slam Verdade seja Dita.

‘Deambulatória, situacionista e “fronteiriça’
Para a jornalista e pesquisadora Prussiana Fernandes Cunha, slams como os citados nesta reportagem configuram-se, no chão da cidade, “como práticas de tradução do espaço urbano, realizadas não apenas através da linguagem verbal e da performance oral, mas por meio de um conjunto mais amplo de elementos – histórias de vida, territórios, fronteiras, trânsitos”. Na tese Uma cidade se reinventa: deambulações, poesias de periferia e disputas de sentido em Belo Horizonte, defendida em 2024 no Programa de Pós-graduação em Comunicação, ela caracteriza essa poesia como “situacionista”, “deambulatória” e “fronteiriça”; uma poesia que “tensiona e disputa sentidos dentro da rede textual da cidade” – rede que, para a autora, essa mesma poesia ajuda a construir e pela qual é também composta.

Para a autora, trata-se de uma produção “deambulatória” em razão de que “seus poetas, em situação periférica, estão sempre em trânsito pela cidade”, construindo sentidos e contatos por meio do já citado intercâmbio entre periferias e entre as periferias e o centro; “fronteiriça”, por se fazer na (ou desde a) “zona mutante” que são as periferias urbano-poéticas de Belo Horizonte, em suas “ambiguidades constitutivas”, áreas de tensão social e política; e “situacionista” porque, conforme ela escreve, essa poesia “não acontece nem antes nem depois, mas junto ao cotidiano da cidade”, agindo sobre ele e sofrendo também sua influência.

Essa caracterização se incorpora em um campo mais amplo de investigação sobre o qual a pesquisadora se detém. É que, desde 2018, Prussiana organiza na capital mineira o projeto Atravessar BH, que coordena longas travessias coletivas, a pé, pela cidade, na busca por se conhecer seus limites, suas fronteiras e seus transbordamentos físicos e sociais. As caminhadas ocorrem principalmente “por regiões fora do centro, com o objetivo de conhecê-las por meio do corpo em deambulação, das pessoas com quem caminhamos e dos encontros que surgem nos percursos”, anota a pesquisadora.

As primeiras edições dessas caminhadas ocorreram justamente junto aos poetas participantes dos saraus e slams das regiões de Venda Nova e do Barreiro, história que é detalhada em sua tese. Segundo ela, a ideia era “que as caminhadas também servissem para que mais gente pudesse conhecer os saraus de periferia e os slams, ajudando a alimentar suas redes”. No fim dos anos 2010, com o mencionado crescimento da cena slam da capital, começam a também ser publicados os primeiros levantamentos que tentavam mapear e sistematizar, sob a perspectiva de uma rede, essa pluralidade de iniciativas que pululavam na cidade.

Fotos de pessoas caminhando por Belo Horizonte
Em diálogo com sua pesquisa acadêmica, Prussiana organiza desde 2018 o projeto Atravessar BH, que coordena longas travessias coletivas, a pé, pela cidade e por suas fronteiras
Fotos: redes sociais do projeto Atravessar BH | Reprodução

Os esforços de mapeamento
Em 2018, a editora Crivo, de Belo Horizonte, publica Atlas dos Saraus da RMBH, da arquiteta e poeta Camila Félix, talvez o primeiro levantamento sistemático feito do tema na capital. No livro, ela mapeia nada menos que 26 iniciativas que ocorriam na cidade. No ano seguinte, na esteira dessa primeira publicação, pesquisadores do Cefet-MG realizam novo mapeamento, publicado como livro digital em 2021 sob o título Guia de slams de BH e RMBH.

Organizado por Theresa Ciolete e Luiz Henrique Oliveira, o guia buscou aumentar o conhecimento acerca de algumas dessas manifestações culturais. Nele são investigados mais profundamente nove dessas iniciativas. “Presentes no cotidiano da população, os eventos [de slam] agregam valor estético à cidade, através de práticas orais e performáticas de cunho político e poético”, escrevem Theresa Ciolete e Luiz Henrique Oliveira em seu guia, disponível gratuitamente na internet.

Capa do 'Guia de slams de BH e RMBH', organizado por Theresa Ciolete e Luiz Henrique Oliveira
‘Guia de slams de BH e RMBH’, organizado por Theresa Ciolete e Luiz Henrique Oliveira
Imagem: Reprodução de capa

No meio do caminho, uma pandemia
“Em 2020, a pandemia de covid-19 impôs um isolamento social que impediria a realização presencial dos slams nos dois anos seguintes”, lembra Bruna Stéphane Oliveira Mendes da Silva na tese A voz e a vez das mulheres no slam: poesia, performance e resistência, defendida em 2024 no Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários (Pós-Lit). “Embora algumas comunidades tenham recorrido a edições on-line, a impossibilidade da presença fez do formato algo distinto dos slams convencionais”, ela anota.

Com efeito, a emergência sanitária impossibilitou não apenas que os eventos seguissem sendo realizados no formato anterior, mas impediu inclusive a continuidade do mapeamento da cena então em curso. Na época, alguns slams até se adaptaram em versões virtuais, mas a maioria acabou sendo interrompida. Em 2023, com o fim das restrições sociais, o movimento começou novamente a ganhar corpo, ainda que muitas iniciativas tenham restado fraturadas. Esse é o quadro de agora, em que a cena slam da capital começa outra vez a fazer barulho.

“O slam está crescendo rapidamente no mundo e ganhando mais adeptos a cada ano. Esse fenômeno tem grande impacto na cena cultural local, bem como na cena nacional e mundial”, afirmam Theresa Ciolete e Luiz Henrique Oliveira em seu livro. “Os artistas de Belo Horizonte e da Região Metropolitana de Belo Horizonte são grandes competidores no cenário mundial e grandes poetas no campo da literatura marginal”, demarcam. “Slammers belo-horizontinos já chegaram, mais de uma vez, até a semifinal (etapa nacional) e à grande final (etapa mundial) do jogo.”

Cartazes do 'Grand Poetry Slam', a 'Copa do Mundo' do Slam, realizada anualmente na França
Cartazes do ‘Grand Poetry Slam’, a ‘Copa do Mundo’ do Slam, realizada anualmente na França
Imagem: Reprodução de cartazes

Terra de campeões
Por meio dessa declaração, Theresa Ciolete e Luiz Henrique Oliveira referem-se notadamente a João Paiva e Pieta Poeta, vencedores do Slam BR em 2014 e 2018, respectivamente. São os dois grandes campeões mineiros da disputa nacional.

Após vencer a competição de 2014, o belo-horizontino João Paiva participou, no ano seguinte, do Grand Poetry Slam, na França. “Foi uma experiência única. Conheci pessoas de lugares que eu nem sabia que existia”, comentou o slammer na época. Naquele ano, em entrevista ao Jornal Hoje em Dia, João Paiva também discorria sobre a cena slammer da cidade. “Em Belo Horizonte, a maior parte do público do slam é de jovens da periferia. Os poemas geralmente têm uma carga política e engajada, isso atrai um público que se identifica com essa mensagem.”

De fato, as diferentes pesquisas que tratam do tema demonstram que o público dos slams é predominantemente jovem, negro (preto e pardo), oriundo de periferias e tem entre 15 e 25 anos, sendo estudante ou egresso do ensino médio. Nessa seara, vale mencionar que boa parte dessas pesquisas, senão sua totalidade, foi feita por investigadores participantes, isto é, pesquisadores de pós-graduação que integravam e seguem integrando os movimentos de slam que buscavam compreender. Nesse sentido, são fruto da recente abertura ocorrida da universidade pública brasileira a um perfil de estudante mais pobre e negro, egresso de escolas públicas.

Esse é o caso, por exemplo, do mineiro Pieta Poeta, vencedor da edição 2018 do Slam BR. No ano seguinte, assim como João Paiva, Pieta também representou o Brasil na copa do mundo de Slam, na França – na ocasião, conquistou o quarto lugar geral na competição. No mesmo ano, o poeta – que é um homem trans, negro e periférico – foi convidado a se apresentar no primeiro slam realizado no âmbito da programação oficial da Festa Literária Internacional de Paraty. Era um primeiro movimento – sem muitos desdobramentos posteriores – de tentativa de incorporação da cena slam pelo circuito mainstream de cultura literária nacional.

O slam e o feminismo
Menos hostis ao público feminino, os slams também parecem ter emergido em Belo Horizonte como um contraponto, em alguma medida, à “falta de representatividade das mulheres nas batalhas de rap” que já ocorriam na cidade. “Era inquestionável que as mulheres não eram tão bem recebidas nestes espaços quanto os homens, e frequentemente as disputas giravam em torno de rimas misóginas”, anota Sthefanie Magalhães Castro Paiva na dissertação A performatividade das poetas no espaço público: aspectos políticos da participação de mulheres nos slams, defendida no Programa de Pós-graduação em Comunicação Social em 2024.

Em especial, ela menciona a importância do advento do Slam das Manas, criado em 2016, no qual apenas mulheres podem batalhar, ainda que homens possam participar do evento em outras funções, como plateia e/ou jurados. O tema também é investigado por Bruna Stéphane Oliveira Mendes da Silva na tese A voz e a vez das mulheres no slam: poesia, performance e resistência, defendida em 2024 no Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários (Pós-Lit).

Para Sthefanie, a entrada das mulheres nesse espaço público de diálogo, possibilitada pelos slams, começou a romper com certa “ordem do discurso” predominante no período. “No espaço público físico as mulheres já estavam, mesmo que não de forma política, mas a ocupação do discurso não era feita e é isso que o slam faz. O rompimento é o fato de encontrarem uma escuta e modularem o espaço público para além do que é físico”, anota a pesquisadora em sua dissertação.

Em seu trabalho, a pesquisadora entrelaça essa perspectiva feminista com as questões de classe expressas no âmbito dos slams, sob uma perspectiva da interseccionalidade. “É fundamental reconhecer que as experiências de desigualdade de gênero não são homogêneas e que a luta pela igualdade de gênero está intrinsecamente ligada a outras lutas, como justiça racial e econômica”, registra Sthefanie em seu trabalho.

Registros de apresentações do Slam das Manas
Registros de apresentações do Slam das Manas
Fotos: Instagram Slam das Manas | Reprodução

Batalhas poéticas

Frequentados sobretudo pela população não acadêmica, os slams são competições de poesia falada que ocorrem em molde semelhante ao das batalhas de hip-hop, mas com regras próprias. No slam, os poetas não competem em duelos, propriamente, mas, sim, em uma competição geral, em que cada poeta recita separadamente seus versos autorais e recebe notas da plateia. Os que recebem as melhores notas vão avançando na disputa, até que se chegue ao “slammer” (nome dado aos competidores) vencedor.

No slam, essa escolha dos vencedores é feita pelo público presente, popular e voluntário, via cartazes com notas; pessoas são selecionadas em meio ao público para atuarem como jurados. Eventualmente, a classificação também pode ocorrer por aclamação. Em algumas disputas, As batalhas vão avançando no formato de eliminatórias (em cada rodada, o slammer precisa recitar um poema diferente, sem se repetir), até que se chegue ao grande vencedor.

Como regra, as performances individuais têm de durar no máximo três minutos. Nelas, é vetado o uso de adereços cênicos, figurinos ou acompanhamento musical, seja ao vivo ou gravado; o objetivo é que o foco recaia integralmente sobre o texto e sobre a apresentação que é feita dele pelos poetas, que costumam empregar bastante ênfase em suas performances, buscando estabelecer uma relação ativa com o público presente.

Ainda que as poesias recitadas devam ser sempre autorais, eventualmente ocorrem, no âmbito do movimento slam brasileiro, momentos abertos para a recitação de clássicos da literatura publicada em livro nos circuitos mainstream, como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira. Nesses casos, as apresentações tendem a ser não competitivas, apenas de exibição, então realizadas sob a lógica do sarau.

Pela ocupação da cidade
Por sua natureza, o movimento slam mantém ligação estreita com a literatura marginal, a performance, a população periférica e a cultura hip-hop – e também com a ideia de uma ocupação mais democrática das cidades. Esse aspecto é particularmente forte na cena belo-horizontina, que emergiu na esteira de outros movimentos de ocupação da cidade, como o Duelo de MCs (surgido em 2007) e o movimento Praia da Estação (2010). Sob essa perspectiva, os slams se realizam na capital mineira como espaços para o debate, via poesia, de questões prementes da atualidade citadina e social.

“As poesias recitadas abordam, majoritariamente, questões cotidianas, experiências vivenciadas pelos poetas e pelas comunidades periféricas”, explicam Theresa Ciolete e Luiz Henrique Oliveira em seu guia. “Trazem principalmente temas políticos, históricos e sociais, retratando as várias realidades presentes na cidade e fomentando a reflexão crítica.” Nesse sentido, o slam é em Belo Horizonte um “espaço de representatividade dos grupos historicamente silenciados” e “de reflexão e ação, luta e organização coletiva”.

Capa do livro 'Atlas dos saraus da RMBH', de Camila Félix
‘Atlas dos saraus da RMBH’, de Camila Félix
Imagem: Reprodução de capa

De caráter predominantemente urbano, o movimento tem como origem “oficial” encontros para a leitura de poesias realizados em bares e teatros de Chicago, nos EUA, na década de 1980. No Brasil, o movimento entrou via São Paulo – hoje a principal cena nacional do movimento – no início dos anos 2000, e a partir daí passou a ser praticado em espaços públicos urbanos de diferentes localidades – além de Minas Gerais, há cenas já relativamente fortes no Rio de Janeiro e em estados como Ceará, Pernambuco e Espírito Santo.

Existe um circuito oficial de competição que se organiza em etapas municipal, estadual, nacional e mundial. A etapa nacional é chamada de Slam BR – Campeonato Brasileiro de Poesia Falada. Ocorre pelo menos desde 2014. Já a final mundial da competição, denominada Grand Poetry Slam (eventualmente, também de “coupe du monde”, copa do mundo) acontece anualmente na França e com regras específicas, como a formação pontual de corpo de jurados entre o público. A primeira edição do torneiro mundial ocorreu em 2004. Foi essa a competição de que participaram João Paiva e Pieta Poeta, representando Belo Horizonte.

Pesquisas sobre o tema realizadas na UFMG

Tese: Uma cidade se reinventa: deambulações, poesias de periferia e disputas de sentido em Belo Horizonte
Autora: Prussiana Araujo Fernandes Cunha
Programa de Pós-graduação em Comunicação, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Orientador: Elton Antunes
Defesa: 18/12/2024

Tese: A voz e a vez das mulheres no slam: poesia, performance e resistência
Autora: Bruna Stéphane Oliveira Mendes da Silva
Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras
Orientadora: Elisa Maria Amorim Vieira
Defesa: 22/11/2024

Dissertação: A performatividade das poetas no espaço público: aspectos políticos da participação de mulheres nos slams
Autora: Sthefanie Magalhães Castro Paiva
Programa de Pós-graduação em Comunicação Social, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Orientadora: Regiane Lucas de Oliveira Garcez
Defesa: 26/8/2024

Tese: As afrografias e suas ressonâncias nas performances de poesia falada no slam
Autor: Rogério Meira Coelho
Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras
Orientador: Marcos Antônio Alexandre
Defesa: 31/8/2023

Dissertação: Um percurso de memória: os rastros do Cura Circuito de Arte Urbana e do slam Clube da Luta na plataforma Instagram
Autora: Eliza Caetano Alves
Programa de Pós-graduação em Artes, da Escola de Belas Artes
Orientador: Carlos Henrique Rezende Falci
Defesa: 28/10/2021

Dissertação: A palavra é sua!: os jovens e os saraus marginais em Belo Horizonte
Autor: Lucas Oliveira Sepúlveda
Programa de Pós-graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social, da Faculdade de Educação
Orientador: Juarez Tarcísio Dayrell
Defesa: 19/6/2017

Dissertação: A palavração: atos político-performáticos no Coletivoz Sarau de Periferia e Poetry Slam Clube da Luta
Autor: Rogério Meira Coelho
Programa de Pós-graduação em Artes, da Escola de Belas Artes
Orientador: Maurilio Andrade Rocha
Defesa: 31/3/2017

Tese: Entre a luta, a voz e a palavra: partilhas de sentido em torno de um sarau de periferia
Autor: Otacilio de Oliveira Junior
Programa de Pós-graduação em Psicologia, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Orientador: Marco Aurélio Máximo Prado
Defesa: 31/8/2016

Categoria: Arte e Cultura

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