A importância da discussão LGBTQIA+ dentro das comunidades indígenas

 

28 de junho de 2023

 

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Os povos indígenas no Brasil enfrentam diversas lutas sociopolíticas em busca de garantir seus direitos e sua sobrevivência. Além da demarcação de terras e as demais demandas que permeiam esse assunto – comumente em maior evidência nos canais de notícia ao abordar povos indígenas – a comunidade LGBTQIAPN+ dentre esses trazem mais pautas para essa luta, apontando para o preconceito e exclusão com que convivem dentro e fora de suas comunidades. Afinal, algo tão natural pode surpreender não-indígenas. Contudo, é importante destacar a existência significativa de pessoas indígenas LGBTQIAPN+ ao longo de toda história, pois, de fato, o primeiro registro de assassinato por homofobia no Brasil foi de um indígena.

 

Em 1614, Tibira do povo Tupinambá, na região de São Luís, atual capital do Maranhão, foi executado por religiosos que justificaram a condenação alegando “purificação da terra das maldades dos indígenas”. A execução foi relatada pelo frade franciscano Yves d’Évreux que não registrou o nome do indígena, sendo Tibira um nome dado por Luiz Mott, antropólogo, historiador e fundador do Grupo Gay da Bahia. “Tibira tem sido motivo de resgate desse lado escondido e perseguido da população indígena brasileira, lembrando que há LGBT dentro das aldeias indígenas”, afirmou Luiz Mott em entrevista ao canal CNN em 2022.

 

Esses e outros acontecimentos impactam até hoje a sociedade. Os resultados preliminares do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que há 305 etnias indígenas diferentes no Brasil, que apresentam identidades distintas. Assim, é presumível admitir que eles lidam com a sexualidade e gênero de maneiras diversas, mas não existe nenhum levantamento, até então, a respeito da sexualidade indígena. A ausência de dados e discussão do tema acarretam no chamado preconceito duplo, por ser indígena e LGBTQIAPN+. Em função disso, é observado a origem de grupos e movimentos que possibilitam a identificação, união e o fortalecimento enquanto comunidade para combater esse duplo preconceito. Nesse sentido, surgem os coletivos como o TYBYRA, formado por vários LGBTQIAPN+ com diversos povos, dando início ao trabalho dessa pauta dentro do movimento indígena.

 

Esse movimento reverberou e, durante o 18° Acampamento Terra Livre 2022 (ATL), aconteceu um momento histórico, a primeira plenária LGBTQIAPN+ indígena. Erisvan Guajajara, homem gay, jornalista e um dos fundadores do coletivo Mídia Indígena, coordenou a mesa com representantes de coletivos indígenas LGBTQIAPN+ de todo o Brasil. Em seu discurso, ele afirmou: “Tire seu preconceito do meu caminho que irei passar com o meu cocar”. 

 

A existência desses coletivos têm reforçado a importância da discussão de gênero e sexualidade dentro das comunidades indígenas que, apesar de serem diversas e possuírem diferentes  perspectivas a respeito do tema, compartilham da falta de representatividade e, por consequência, da falta de políticas públicas. Além de muitos relatarem dificuldades para encontrar apoio e orientação dentro de suas próprias famílias e comunidades, uma vez que ocorrem poucas discussões e debates sobre sexualidade, acarretando na invisibilização da população LGBTQIAPN+ indígena nestas comunidades. Um exemplo disso é visto no documentário Terra Sem Pecado, dirigido por Marcelo Costa, baseado em seu trabalho de conclusão de curso  “Homossexualidade indígena e LGBTQfobia no Brasil: duas faces da mesma moeda.”. Em uma das cenas do documentário, há o relato de Alisson Cleomar dos Santos, do povo Pankararu, que diz “ter passado a vida na comunidade achando que era o único e se sentindo errado”. Essa perspectiva, segundo o relato, acabou  por criar nele o desejo de sair da comunidade e ir para a cidade com a falsa ideia de que, assim, seria melhor. Porém, ao chegar na cidade e na universidade, ele também expõe ter encontrado “intolerância 100% e violência gratuita”.

 

Por outro lado, Katú Mirim, rapper, cantora e atriz, em seu vídeo para a Parada SP Ao Vivo 2021, afirma que na aldeia Guarani-mbyá  e na aldeia de seu povo Boe-bororo em Mato Grosso, nunca deparou com nenhum comportamento LGBTfóbico, já que o tema é tratado de forma natural, não havendo sequer a necessidade de “se assumir”.

 

No documentário MAJUR podemos encontrar um relato semelhante da indígena Majur, que afirma ter sido aceita pelos seus pais e sempre foi respeitada em sua comunidade. Hoje, cacica na aldeia Apido Paru, Terra Indígena Tadarimana em Rondonópolis (MT), Majur é símbolo da luta transsexual indígena, compreendendo que essa aceitação não é comum aos demais indígenas que também sofrem com a transfobia e a falta de recursos e acesso aos procedimentos médicos. Essas experiências tão diferentes do modo de lidar com a sexualidade dentro das aldeias levantam um questionamento muito importante: considerando a diversidade interna de modos de vida das comunidades indígenas, quanto dessa LGBTfobia é um rastro deixado pela colonização?

 

A pesquisadora e doutora em Antropologia Barbara Arisi traz uma reflexão para essa pergunta em seu primeiro livro “Gay Indians in Brazil: untold stories of the colonization of indigenous sexualities”, publicado em 2017 pela editora suíça Springer. O livro é resultado de uma pesquisa em que a antropóloga coletou registros de cronistas, padres, jesuítas, dominicanos e outros, que abordavam as práticas sexuais não-monogâmicas e não-heterossexuais que os povos indígenas admitiam em suas comunidades antes da invasão e colonização europeia, apontando para como a proibição e extinção dessas práticas foram impostas a esses povos. Outra pessoa a apontar esses efeitos da colonização é o jornalista indígena gay José Tarisson Costa da Silva, que conta que no povo Nawa do Acre existem registros indicando a demonstração de suas afetividades e sexualidades  independente do gênero  pelos antepassados do povo Nawa. Em texto publicado em 2021 pelo AmazoniaReal, Tarisson reconhece que na maioria dos territórios, a colonização impactou e impacta negativamente os corpos indígenas e suas relações. Tarisson coloca em seu texto: 

 

“A sexualidade não tinha essa hierarquia ou relação de violência com pessoas, com práticas diferentes. Atualmente, afirmar-se como indígena LGBT é fundamental para a luta e o reconhecimento. É a diferença dentro da diferença”.

 

Apesar da relevância de se observar esses aspectos, é de extrema importância lembrarmos que deve-se ter cuidado ao colocarmos tudo na conta da colonização, uma vez que são mais de 300 povos no Brasil e é praticamente impossível mensurar o quanto a fluidez do gênero e da sexualidade foram alteradas nesses povos com a colonização.

 

Essa discussão é extensa e ainda há muito para se debater. Estes são apenas alguns dos pontos e relatos que se encontram nas redes sociais, nos coletivos e nos movimentos que crescem no Brasil. O assunto ainda é tabu e ainda requer muito mais representatividade, mas a diversidade sexual nas aldeias tem ganhado força através de todas essas pessoas e muitas outras que têm decidido romper o silêncio. Sendo junho o mês do orgulho LGBTQIAPN+,  pensarmos os direitos da comunidade é pensarmos em todos os povos que fazem parte dessa sigla. Que tal ouvi-los e ampliar ainda mais essa discussão?

 

[Texto de autoria de Christopher E. Mourão, aluno do curso de graduação em Psicologia e estagiário do Núcleo de Ações Educativas]

 

Para saber mais:

Documentário Terra Sem Pecado

Ano: 2019

Documentário baseado na pesquisa “Homossexualidade indígena e LGBTQfobia no Brasil: duas faces da mesma moeda.”

Direção: Marcelo Costa

 

MAJUR | Curta-Metragem – Orgulho LGBTQIA+

Ano: 2018

Majur é porta-voz e responsável pela Chefia de Comunicação em uma comunidade indígena no interior de Mato Grosso.

Indicado ao primeiro turno do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2019

Direção e Fotografia: Íris Alves Lacerda, DAFB

 

Referências:

FERNANDES, E. R. Ativismo Homossexual Indígena: Uma Análise Comparativa entre Brasil e América do Norte. Dados, v. 58, n. 1, p. 257–294, 2015.

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